São Paulo, sábado, 16 de dezembro de 1995
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As surpresas que vêm da França

MARCO AURÉLIO GARCIA

A crise social e política que vive a França nestas últimas semanas constitui-se em um novo -e até certo ponto surpreendente- capítulo da crise não só do Estado de bem-estar, como das tentativas neoliberais de substituí-lo.
Os trabalhadores franceses são mesmo incorrigíveis. Em 1936 não só elegeram uma maioria de centro-esquerda para governar o país -o Front Populaire- como, algumas semanas após, deflagraram uma greve geral, com ocupação de fábricas, da qual resultaram importantes conquistas sociais. A classe operária dava sua alternativa à crise econômica e social em que se encontrava mergulhado o mundo desde 1929.
Com a libertação, em 1944, e durante o primeiro governo De Gaulle, os trabalhadores tiveram uma retomada e aprofundamento do Estado de bem-estar. A força do movimento operário, o peso do Partido Comunista naquele momento e a "ameaça comunista", do outro lado da "Cortina de Ferro", acabaram por civilizar o capitalismo, suscitando uma insuspeitada sensibilidade social na burguesia européia e francesa.
Em 1968, no bojo de uma crise de amplitude e significação bem mais ampla e após a maior greve geral que a humanidade conheceu, as conquistas sociais foram aprofundadas nos "acordos de Matignon".
Vê-se que o Estado de bem-estar na França não é resultado de dádivas do poder, mas consequência de uma sociedade forte -que teve em 200 anos a experiência de três revoluções- e que não está disposta a sacrificar suas conquistas no altar do neoliberalismo.
A crise do Estado de bem-estar não é só resultado das profundas mudanças por que passou o capitalismo mundial a partir dos anos 70, que erodiram os pactos nacionais que a socialdemocracia (e às vezes os comunistas) haviam estabelecido com as burguesias européias. Ela é também consequência da incapacidade das esquerdas locais -socialistas e comunistas- em oferecer uma alternativa, incapacidade esta que se revelaria mais aguda com o colapso dos regimes burocráticos do Leste Europeu.
Depois da fracassada experiência distributivista do gabinete Mauroy, no começo do primeiro governo Mitterrand, os socialistas franceses acabaram enveredando pelo caminho dos ajustes de caráter neoliberal que restabeleceram o "equilíbrio macroeconômico" do país (franco forte), mas concentraram a riqueza, aumentaram brutalmente o desemprego e empurraram o país, primeiro, para uma maioria parlamentar de direita e depois para um presidente conservador. Esse mesmo filme parece estar chegando a seu desfecho na Espanha, onde González seguiu o mesmo roteiro.
"La vida nos dá sorpresas", ensina o pensador Rubén Blades, e coube uma vez mais aos trabalhadores franceses essa "surpresa", não tão surpreendente, haja vista os antecedentes históricos.
Os xiitas do monetarismo, insensíveis ao desemprego e à exclusão, têm tido nos dois últimos anos algumas "sorpresas": em Chiapas, nas ruas de Paris e agora nas de Bruxelas. É de se esperar que esses fatos iluminem as cabeças de nossos aiatolás neoliberais.
Já os trabalhadores brasileiros descobriram nas últimas semanas que Paris não é apenas o refúgio para sociólogos perseguidos, mas um belo exemplo de resistência a seguir.

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