São Paulo, quinta-feira, 21 de dezembro de 1995
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A hora da palavra

JANIO DE FREITAS

Surge afinal uma possível explicação para a insistência do presidente Fernando Henrique em manter o Sivam entregue, apesar de tudo, à empresa Raytheon: este contrato agradaria a um grupo de senadores americanos que, por isso, não criariam obstáculo ao apoio do seu governo à velha pretensão do Brasil de integrar o Conselho de Segurança da ONU.
O apoio do presidente Bill Clinton à pretensão brasileira não se condicionou, na sua formulação inicial, à presença dominante da Raytheon no Sivam, mas à adoção de medidas como a privatização geral, a abertura para as importações, atrativos para o capital que busca lucros financeiros, enfim, para a aplicação das políticas conhecidas como o Consenso de Washington. E, no vocabulário brasileiro, sintetizadas na palavra neoliberalismo e praticadas pelo governo de Fernando Henrique, na medida em que as circunstâncias o permitem. A proteção à Raytheon foi um acréscimo às condições iniciais.
Circunstâncias de repente agravadas, sobretudo em relação à entrega do Sivam à empresa americana, por incidentes que, no entanto, nada tinham a ver com as condições provenientes do governo americano, nem a adoção delas pelo governo brasileiro. Se provérbios ainda são lembráveis, talvez seja o caso daquele que fala em escrita certa por linhas tortas.
O fato é que a palavra crise, de uso tão fácil no jornalismo atual, desta vez encontra aplicação apropriada e dupla, senão mesmo tripla. Estamos diante de uma crise política, expressa pela crescente inversão das relações entre PFL e governo; de uma crise de governo, pela duvidosa permanência de alguns diretores do Banco Central; e pelo possível surgimento de outra crise a partir da entrevista do embaixador dos EUA, Melvyn Levitsky, no "Jornal do Brasil de ontem.
Esta situação incomum decorre de que os casos Sivam, grampo, pasta rosa, antes ligados por liames apenas tênues, a ponto de serem tratados como casos à parte um do outro, tornaram-se entrelaçados por inabilidades que chegam a parecer propositais. Não o são, com certeza. O PFL bem que teve o cuidado de limitar ao Banco Central suas reações à divulgação da pasta rosa. Com isso, não acrescentava dificuldades a Fernando Henrique nem perturbava sua relação íntima com o governo, porque o BC já era alvo inconsequente dos pefelistas baianos desde a intervenção no Econômico.
Nenhum dos experientes pefelistas, porém, teve a cautela indispensável de chamar a atenção do presidente para a hábil delimitação das reações. O cenário ficou aberto à incontinência verbal de Fernando Henrique, com os comentários, como de hábito, na direção inconveniente e na forma arrogante-insultuosa. Foram atingidos, na sucessão das declarações hostis à beira do Pacífico, os senadores da comissão especial que examina o Sivam, o senador Antônio Carlos Magalhães em pessoa, um diretor do Banco Central, o antes aliado incondicional Luís Eduardo Magalhães e os diretores do BC poupados até então. Entende-se que o bafafá esteja generalizado e com vigor, ao que tudo sugere, ainda não percebido por Fernando Henrique, ou ontem teria dado o descanso merecido pela garganta.
Mas os elementos da crise não se encerram aí. A par da ação proposta por procuradores da República contra o ministro da Fazenda e a direção do BC, pela entrega de R$ 3,5 bilhões ao Banco Econômico já em estado de coma, outro ato no âmbito judicial tende a conquistar relevância pública e levar dificuldades muito incômodas ao governo. É o processo que o procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, já chamado de Geraldo Escudeiro por sua resistência a iniciativas investigatórias da Procuradoria, sentiu-se compelido a providenciar em seu próprio nome. Processo para investigar nada menos do que enriquecimento ilícito em nada menos do que a Presidência da República, tendo suspeito, e não pelo que está dito nas fitas gravadas, o embaixador Júlio César dos Santos, até há pouco o mais íntimo dos assessores de Fernando Henrique.
Aos embaraços políticos e administrativos, e talvez ainda diplomáticos, a crise incorpora um problema de moralidade administrativa, este corrosivo sem igual entre os venenos brasileiros.

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