São Paulo, quinta-feira, 21 de dezembro de 1995
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Cordão umbilical

MOACYR SCLIAR

Tudo começou com a inusitada punição imposta pelo juiz. Filha -mesmo delinquente, e principalmente delinquente- acorrentada à genitora, não é estranho? Mas mãe é mãe e a boa senhora, depois de algum tempo acostumou-se à situação. Exercia com boa vontade o seu papel de guardiã, até mesmo porque isso lhe dava oportunidade para uma convivência íntima com a filha, uma convivência que ela não tinha desde que a menina era um bebê:
- É como um cordão umbilical -dizia, com melancólica satisfação, às amigas. Que se olhavam, suspeitavam de que aquilo não funcionaria. Mas enganavam-se. Funcionou, sim. Só que não de maneira esperada.
Presa pelo cordão umbilical, a filha seguia a mãe ao supermercado, às lojas, ao banheiro, até. Presa pelo cordão umbilical -que afinal tem duas pontas-, a mãe seguia a filha ao colégio, aos bares onde se reunia com as colegas.
As conversas que a boa senhora ouvia faziam-na enrubescer. Era uma dama de rígidos princípios morais e não estava acostumada com a liberalização dos costumes. A filha achava graça: você vai aprender, dizia, você vai se modernizar.
Em pouco tempo, a mãe estava por dentro da gíria corrente. Também aprendeu a fumar e experimentou (sem muito prazer, mas com alguma excitação) marijuana. Muito tarde deu-se conta de que aquilo fazia parte de uma estratégia da filha. Uma estratégia, por assim dizer, educativa, cujo objetivo final era transformá-la numa discípula da jovem. Papéis invertidos, por assim dizer.
Estavam numa loja cheia, quando de repente a garota lhe disse:
- Presta atenção no que vou fazer.
Apanhou um frasco de perfume e rapidamente enfiou-o no bolso. Vamos embora, sussurrou. Só na rua a mãe conseguiu se recuperar. Como você ousou fazer uma coisa dessas? -perguntou, ultrajada.
Agora ficou fácil disse a filha, acrescentando: Quem vai desconfiar de nós? Nós duas acorrentadas? Estamos acima de qualquer suspeita, mamãe. Não corremos risco algum. E na próxima vez é você quem vai experimentar.
A mãe não disse nada. Mas sabia que seu destino estava traçado. Apesar de toda a sua boa formação, ela já se tinha iniciado no fácil caminho da transgressão. Tudo por causa da corrente, claro. Do cordão umbilical. Que é, afinal, uma via de duplo sentido.

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