São Paulo, quinta-feira, 21 de dezembro de 1995
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Antonio Callado fala de beleza e saudade

MARCELO REZENDE
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Sua fala se dirige para a história, lembranças e pessoas que fizeram parte da construção de uma imagem -e de um espírito- tidos como plenamente "cariocas".
Nascido em Niterói em 1917, Callado abriu mão de um diploma de direito e, em 1937, iniciou sua carreira como jornalista no jornal "Correio da Manhã". Uma carreira que o levou à Europa -de 1941 a 1947-, onde trabalhou para a rádio BBC em Londres, e também às seguidas prisões durante o regime militar brasileiro.
Mas o conduziu também ao interior do Brasil, onde descobriu o Xingu e os índios que se transformaram no tema de "Quarup" (1967), seu mais conhecido trabalho de ficção ao lado de "Reflexos do Baile" (1976).
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Folha - Durante suas ausências do país, como nos anos 40, o que mais o incomodava era a saudade do Brasil ou do Rio?
Antonio Callado - Do Rio sentia saudades. Do Brasil eu só fui sentir mais tarde, depois de uns dois anos fora senti falta do Brasil em geral. E, quando vim da Europa, cheguei com a idéia de conhecer o país e também... a saudade do Rio não, essa era permanente. Do Rio era o tempo todo. Me lembro que eu estava muito bem na Inglaterra, estava no centro do grande assunto que era a guerra. Mas do Rio eu sentia falta. Ainda mais com aquele frio desgraçado.
Folha - Para muitos que visitaram a cidade, o Brasil era o Rio. Muitos que chegavam, como o escritor Aldous Huxley em 1958, faziam essa identificação?
Callado - Acho que sim. Se sentiam mais atraídos pelo Rio do que pelo Brasil. Huxley passou uns dias no Rio de Janeiro, onde acabou visitando um terreiro. Levaram o Huxley para a macumba no Rio de Janeiro e ele adorou. Logo depois, o jornal "O Estado de São Paulo" fez um editorial esculhambando o caso como "negócio de cariocas". "Macumba? Mas isso não é possível, essa idéia de pegar um homem como o Huxley, um sábio, aquela flor da cultura inglesa... por que fizeram isso? Levar para o morro de não-sei-onde, o que o Huxley vai pensar de nós?" Essas coisas. Na verdade, o editorial do "Estado" era cômico. Quando eu fui com o Huxley para o Xingu eu falei para ele: "Um importante jornal de São Paulo escreveu um editorial esculhambando os cariocas porque levaram você para a macumba". Ele disse "o que?", com um jeito meio bravo. "Aquela foi uma das melhores coisas que eu vi no Brasil." A macumba deu a ele uma idéia muito clara do que era a religião dos gregos antes da grande época. A macumba deu a ele a visão nítida do que eram os gregos antes da era clássica.
Folha - No mesmo ano, a poeta americana Elizabeth Bishop já morava no Brasil, companheira de Lota Macedo Soares.
Callado - Esse foi o mesmo período em que a Elizabeth Bishop morava praticamente -porque ela também tinha uma casa em Ouro Preto, ela e a Lota- em Petrópolis, na Samambaia. Uma casinha linda, linda, que pertencia à Lota.
Folha - Agora parece haver uma vontade de contar a história das duas, que é um pouco a história do Rio.
Callado - A mim sempre escandalizou que não houvesse nada sobre a Lota. Me escandalizava porque ela fez o Aterro do Flamengo, uma obra gigantesca, uma coisa muito bonita. E não era nem formada em engenharia, em nada disso. Mulher macha (risos). Eu conheci as duas juntas. A Lota era meio cabocla, era mais para a feia do que para a bonita.
Folha - E foi da Lota a idéia da construção do aterro?
Callado - Ela teve a idéia. O Lacerda, que era um grande governador, aceitou. Aí foi chamado o Burle Marx para fazer o lado paisagístico. Quase se mataram. Você não imagina o choque dos dois.
Folha - Como a cidade recebeu a obra quando foi entregue?
Callado - Até hoje a obra é contraditória. Tem gente que acha que o aterro é um crime contra o Rio de Janeiro. Bobagem! O Rio de Janeiro estava muito apertado.
O Rio quando começou era uma aldeia como outra qualquer. As pessoas ficavam perto do mar. Você morava pertinho do mar. Quando começaram os aterros você tinha que aumentar o Rio era pelo mar. Não tinha solução. O Oscar Niemeyer tem um apartamento na avenida Atlântica que era debruçado sobre o mar. Agora está a 300 metros (risos). Copacabana é uma beleza hoje graças ao fato de que se botou 200 metros de rua entre as casas. Aí sim o Rio já tinha idade para ter mais juízo na cabeça e não começar a construir de tal forma que, quando havia uma ressaca, a água entrasse na garagem do Copacabana Palace.
E então descobri que quem estava por trás dos aterros era uma empresa portuguesa (risos). Aí eu disse 'Estamos perdidos!' A pior anedota de português que pode haver na história desse país. Não sabia ainda que eles entendiam de construções à beira-mar.
Folha - O sr. acredita que os políticos e projetos estiveram a altura da beleza da cidade?
Callado - Os governadores da Guanabara foram perfeitos. Alguns foram mais fracos, ou menos espetaculares. Mas não tem comparação com o resto. O Rio de Janeiro é uma cidade...vocês paulistas sabem muito bem disso, a gente que mora no Rio adora o Rio, não adianta nem querer disfarçar. Aí então não tem conversa, o que é do Rio é bom. A beleza da cidade é uma coisa que está presente em todos os cariocas. Já foram feitas as maiores besteiras em nome da beleza do Rio. A cidade é muito bonita, mas você tem de pensar em problemas que são maiores. Mas o carioca leva muito a sério esse negócio da beleza do Rio. Lá em São Paulo em geral eu disfarço, porque vocês já esperam que a gente fale bem do Rio, que "o Rio continua lindo", essas bobagens. Então eu disfarço e digo que o Rio está uma droga. Mas, no fundo, não é nada disso.

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Sobre o Rio de Antonio Callado à pag. 6-5

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