São Paulo, sexta-feira, 22 de dezembro de 1995
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Primeiro livro chega como filho temporão

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A Companhia das Letras acaba de publicar "Não é Sopa", uma coletânea dessas minhas crônicas, acompanhadas de receitas. Estou orgulhosa, como estaria de um filho temporão. E primeiro filho, ainda por cima.
Crônicas de jornal passam depressa, mas crônica de comida não passa tanto assim. Come-se, come-se quase todo dia do mesmo jeito...
O que eu queria mesmo era poder comentar outros livros de cozinha. E consegui. Comentei meus preferidos. Falei de todos aqueles que me deram muito prazer e ainda dão. Passei pelos técnicos com receitas a prova de bala. Montei uma grande bibliografia com história da comida, dicionários, enciclopédias, livros de grandes chefs, livros de bons escritores. Onde comprá-los, como encomendá-los, endereços de livrarias, de assinaturas de revistas e de cartas mensais. Acho que foi um servicinho bom e útil.
Mas, de repente dá uma bobeira no livro e ele se derrama sob o céu de Paraty, peixe frito e jaca, umas couves à mineira, o ponto certo da consistência do angu, nem mole nem duro, úmido, com aquela umidade que o faz brilhar modestamente porque o angu é um ser modesto.
Na minha idade são inevitáveis as lembranças, mas juro que não são do tipo "naquele tempo era melhor". São reminiscências pouco coerentes, tontas que não fazem história, como a cor da geladeira de gelo, o chão de ladrilhos hidráulicos, um riacho cheio de piabas que atravessava uma cozinha. Não faltou o estrogonofe, o coquetel de camarão, a meia-de-seda, cicatrizes indeléveis de quem passou pelos anos 50.
Aproveitei para morrer de saudade das pessoas que me ensinaram alguma coisa, para lembrar de empregados e de patroas também.
Algumas vezes, durante o tempo que escrevi a coluna, me senti como um limão espremido, sem assunto nenhum. Viajei então. Fui a Nova York, me empapei de Bouluds e Bouleys, visitei livrarias, lojas de utensílios, de comida e deixei tudo nomeado, com endereços, telefones, como um guiazinho de porte muito chinfrim.
O único passeio importante foi a Oxford. Era um simpósio que de per si não abalou nenhum pouco os costumes do ocidente. Mas, velha história de precisar ir longe para ver seu próprio umbigo. Voltei agudamente consciente de minha ignorância em relação ao Brasil e me pus a fazer perguntas de adolescente, como quem somos nós, para onde vamos, qual a nossa cara? Nada de respostas, o que é mau.
Escrevi muito sobre o ovo e a galinha. Nem conhecia Clarice Lispector e já achava o ovo um poço de mistério e beleza. Uma vez me peguei num banco popular, numa fila quilométrica, pessoas irritadas, serviço de tartaruga, desrespeito ao cliente. E acreditem, por acaso, eu tinha um ovo no bolso. Podia tocá-lo, sentir seu formato, sua promessa. Promessa de almoço, não de vida, porque o ovo era cozido. Mas, por causa do ovo me senti diferente, diferenciada, a única pessoa com um ovo no bolso e não desmaiei de stress como a mulher a meu lado. Ah! Os poderes de um ovo, a burrice de uma galinha!
Parece que desviei do assunto. O livro foi ilustrado por Maria Eugênia e ficou para lá de lindo. Podem criticar, falar mal do conteúdo, mas na beleza do livro em si, da capa e das ilustrações de Maria Eugênia, ninguém bota a mão.

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