São Paulo, domingo, 24 de dezembro de 1995
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Farmácia vendia coca e maconha até 1938

Banimento ocorreu por pressão internacional

MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Em 1785, o vice-rei do Brasil Luiz de Vasconcellos e Sousa enviou um ofício à Capitania de São Paulo pedindo encarecidamente que os agricultores voltassem a plantar maconha, essa "importantíssima cultura", como frisava.
O ofício era acompanhado de 16 sacas de sementes para serem distribuídas e um folheto explicando como cultivar a erva. Até 1880, pelo menos outra meia dúzia de ofícios recomendavam o plantio.
Não, a Coroa Portuguesa não havia enlouquecido. Maconha -ou cânhamo, como se dizia à época- produzia excelentes fibras para se fazer cordas, cordões e tecidos. Daí o interesse da Marinha e da Fazenda Real portuguesas.
Maconha nem era a primeira droga com a qual Portugal havia sido complacente. Em 1737, a Câmara de São Paulo decidiu restringir a venda de ópio a médicos. Na verdade, fazia cumprir um capítulo das "Ordenações Filipinas", primeiro conjunto de leis moderno a proibir drogas, em 1603.
Um comerciante que vendia ópio a torto e a direito decidiu reclamar da restrição ao rei e em 1738 D. João V determinou: "Que corra livre o comércio destas drogas como os suplicantes requerem".
A primeira restrição a droga no Brasil só viria em 1830. O Rio de Janeiro proibiu a "venda e o uso do pito de Pango", o cachimbo de barro usado para fumar maconha.
O vendedor do pito pagava multa; o negro que pitasse pegava três dias de cadeia.
Maconha mesmo ninguém era louco de proibir. Havia se convertido numa das principais plantas fibrosas produzidas em São Paulo, segundo o "Almanach Litterario de S. Paulo para o Anno de 1876 publicado por José Maria Lisboa". O jornal "A Província de S. Paulo" ensinava até a cultivá-la nesse mesmo ano.
No final do século 19, maconha não era só matéria-prima de corda. Transformara-se em remédio, vendido livremente até 1917 e com receita até 1938, quando foi banida junto com a cocaína. O anúncio mais antigo de maconha encontrado por Guido Fonseca, 61, principal pesquisador da história das drogas no Brasil, data de 1885.
"Basta aspirar a fumaça dos Cigarros indios para fazer desapparecerem completamente os mais violentos ataques de Asthma, Tosse nervosa, Rouquidão, Extincção da vox, Nevralgia facial, Insomnia, e tambem combater a Tisica laryngea", prometia o anúncio da Grimault e Cia., de Paris.
Chamavam-se "cigarros índios" porque eram feitos de cannabis indica, uma variedade de maconha.
Cocaína
Panacéia similar só experimentando um alcalóide que havia sido descoberto em 1859 -a cocaína. Segundo os cientistas, servia para tratar laringite, faringite e era um ótimo anestésico.
Já laboratórios como o Grimault recomendavam o vinho de coca para "pessoas fracas ou debilitadas por trabalho excessivo", para o "empobrecimento do sangue", para tísicos, "às jovens pálidas e delicadas". Ele impediria também dores de estômago e gastrite.
É claro que com tantos efeitos colaterais conhecidos a cocaína não seria só usada como anestésico. Ainda mais com uma legislação dócil.
Em 1882, surgiu a primeira lei que exigia receita para a venda de cocaína -mas não havia pena para infratores. O Código Penal de 1890 era uma piada. A multa mais alta para a venda irregular era 1/60 do preço mais baixo da grama.
Em 1917, a legislação deu uma guinada. O Código Sanitário desse ano previa o fechamento de farmácias que vendessem cocaína e ópio sem receita médica. Pena de prisão para os vendedores só surgiria em 1921. As farmácias, junto com bordéis, eram os principais centros distribuidores de coca.
Sodoma das drogas
São Paulo, a se confiar na polícia, havia se transformado em uma Sodoma das drogas. "A cidade se tornou um centro de alarmantes vícios", escreveu um delegado em 1918, no que deve ser o primeiro documento sobre o impacto das drogas. "As suas vítimas formarão um exército de inutilizados".
Não era só por causa do imaginário apocalipse interno que as leis endureceram. Havia pressão internacional, segundo Edemur Ercilio Luchiari, 54, delegado do Departamento de Investigações sobre Narcóticos de São Paulo.
O controle sobre a cocaína foi instituído em 1904 nos EUA pelo FDA (Food and Drugs Administration). Cinco anos antes, a folha de coca era usada na Coca-Cola.
Em 1912, os norte-americanos pressionaram na Convenção Internacional do Ópio, realizada em Haia (Holanda), para que o ópio fosse banido e a cocaína só fosse vendida com receita -seria a legislação brasileira após cinco anos.
O banimento da cocaína e da maconha das farmácias brasileiras em 1938 era o país acertando o passo com uma convenção internacional de 1925.

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