São Paulo, segunda-feira, 25 de dezembro de 1995
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História a partir do Natal

JOÃO SAYAD

Há 1995 anos, nesta mesma data, ainda que em outro calendário, tivemos a sensação de que havia chegado o fim da história, a partir da mensagem cristã de amor ao próximo, de que tudo seria perdoado e de que a paz reinaria entre os homens.
Vivemos mil anos de trevas, pois a mensagem recebida se transformou em dogma, medo, repressão à liberdade. No ano de 1209, no século de santo Tomás de Aquino -preparatório do Renascimento, que viria a seguir- o papa Inocêncio 3º, o mesmo que se encontrou com são Francisco de Assis, determinou a pena de morte para os hereges e o massacre dos albigenses no sul da França.
Em 1484, o papa Inocêncio 7º, no apogeu do Renascimento, deu plenos poderes a dois padres dominicanos da Inquisição que escreveram um manual com orientações sobre a descoberta, perseguição, tortura e julgamento de bruxas e bruxarias, que resultou no extermínio de milhares de mulheres.
Essas observações do analista Byington, na introdução do livro "O Martelo das Feiticeiras", sugerem que o avanço da luz e da civilização acumulou atrás de si muitas trevas e barbárie.
Há 300 ou 400 anos, o capitalismo avançava rapidamente criando uma máquina poderosa de crescimento, riqueza e liberdade material. Uma massa de camponeses e servos foram transformados em trabalhadores livres mas esfomeados, doentes, trabalhando feito escravos e morando em cortiços urbanos e insalubres.
A liberdade material obtida pelo capitalismo produziu um novo sonho de liberdade, igualdade e segurança na Revolução Russa de 1917. Ela acabou se convertendo em poder arbitrário, em campos de concentração -onde morreram milhares de camponeses- e na derrocada recente de todo o sonho.
Nos anos em que vivemos, o alargamento das possibilidades materiais do homem acumulou vitórias inimagináveis há algum tempo -telecomunicação, informática, viagens interplanetárias- e que, segundo dizem, são insignificantes perto do que nos aguarda no próximo século.
Ao mesmo tempo em que cresce a capacidade de se produzir quase tudo, os mercados e as novas formas de organização das empresas e da produção exigem que todos sejam mais eficientes, mais produtivos, mais econômicos, mais gananciosos.
Somos chamados a trabalhar mais quando existem menos empregos, a gastar e a investir mais quando a escassez se reduz rapidamente, a ficar mais ricos quando o contingente de pobres aumenta. No momento em que a produção e a produtividade crescem rapidamente no mundo inteiro, nos tornamos mais cruéis e impiedosos com os menos capazes, os ineficientes e os excluídos.
Lendo as colunas de economia deste jornal, os dois lados da criação de uma nova história saltam aos olhos. Os colunistas de direita cantam em verso e prosa as vantagens da terceirização, da automação, da economia de mão-de-obra, da necessidade de nos aposentarmos mais tarde, do imperativo de se reduzir os gastos públicos, os subsídios e os benefícios sociais.
Os colunistas de esquerda protestam contra a redução de gastos públicos -quando eles se tornam mais necessários-, são a favor da redução da jornada de trabalho -quando o desemprego aumenta- e de uma ação afirmativa das autoridades em favor do exército dos excluídos, que incha rapidamente como resultado das inovações proclamadas pelos colunistas de direita.
Neste Natal, faço votos que estejamos, mais uma vez, vivendo a gestação de uma nova era de luz. De que as "economias" decorrentes de tantas novidades, de tanta procura por eficiência e progresso, não nos façam perder de vista que trabalhamos para viver e não vivemos para trabalhar. De que a nova era venha logo, de que as trevas que a acompanham sejam breves, de que a nova Inquisição seja curta e de que se queimem poucas bruxas desta vez.

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