São Paulo, segunda-feira, 25 de dezembro de 1995
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Homem-máquina virá acoplado a gravador

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Sou tão dependente dela que não sei se a chamo de livraria ou boca de livro, não importa. Sei que fica na avenida Rio Branco, na metade do percurso das grandes manifestações, entre Candelária e Cinelândia.
Sentia saudades dela no exílio, do cheiro adocicado dos livros franceses das encomendas empacotadas com nomes de ilustres leitores: Drummond, Josué Montello.
Agora chegam livros ingleses e americanos, e as traças obrigaram os donos a usarem inseticida. Durante algum tempo, o cheiro de veneno impregnou as páginas e aquilo ficava na mucosa nasal, como gotas de creolina esquecidas em nosso corpo por um relapso faxineiro.
Quantas teses e romances não rejeitamos inconscientemente, como se o inseticida houvesse entrado na carne dos personagens, penetrado os argumentos mais profundos com seu desagradável odor?
Agora tudo voltou ao normal na velha livraria. As manifestações começam na Candelária, eu as abandono, desço as escadas e me esqueço do mundo, reduzido a slogans distantes e imprecisos: abaixo o quê, unidos quem, vencidos jamais?
Creio que Drummond se interessaria pela estante de filosofia da ciência, cada vez maior, anglo-saxônica. Epistemologia dos andróides. Não pela teoria, mas possibilidade de nomeá-los: Jonix, Antonitrov, Mariex.
O livro em si é um conjunto de ensaios organizado por Kenneth Ford, Clark Glymour e Patrick Hayes. Eles argumentam que o estudo sistemático do conhecimento, atitudes, desejos, preferências e obrigações sempre esteve concentrado nos homens e nos deuses.
Até este século, a fantasia de criar alguma coisa com conhecimento, que não fosse o simples relógio, era alcançada apenas dotando de vida alguma massa inerte e assumindo o risco da vingança dos deuses. O monstro Frankenstein foi o símbolo da criatura pensante produzida pela ciência.
O livro analisa máquinas e seus pensamentos, encara seres humanos como máquinas, mas não chega a desenvolver alguns protótipos que combinem homem e máquina, como já defende Nicholas Negroponte.
Não sei se minha sugestão se enquadra no caso típico de um andróide reconhecido pela ciência. Mas a combinação de um ser humano e um gravador de automóvel seria, digamos assim, uma espécie de contribuição nacional ao universo variado de máquinas, homens, máquinas-homens e homens-máquinas.
Não há nada mais desamparado que um homem carregando um gravador de carro. Não tem, por exemplo, a dignidade de quem carrega uma casca de banana e olha por cima de tudo, em busca de uma lata de lixo.
O homem com o gravador na mão está ali sem poder se desfazer daquela massa metálica, daquele transtorno cromado, quase pedindo socorro à ciência moderna, que poderia implantar o gravador no seu próprio corpo.
E, quanto às fitas, poderiam ser usadas em forma de pastilhas biodegradáveis: o homem engolia a pastilha e uma sinfonia entraria pelos tímpanos.
O homem com o gravador na mão nasce de um dramático dilema: ou é roubado, se deixar o aparelho no carro, ou faz o papel de idiota, carregando um bloco preto, play, forward, rewind, totalmente inútil pela ruas ou galerias dos shopping centers.
Puxar um cachorro é melhor. O bicho resiste, pára, faz pipi, late e ameaça brigar com os outros que estão passando. É uma interação, os movimentos ganham sentido, são explicáveis e, com uma certa flexibilidade, podem até ser elegantes.
Mas o gravador é um caso perdido. Ou as pessoas do futuro já vêm com um gravador embutido, ou então os gravadores devem parir as pessoas. A situação atual é intolerável.
Num dos mais polêmicos ensaios de epistemologia dos Andróides, Margaret Boden pergunta: os robôs podem ser criativos? E nós saberíamos?
Se pensarmos no robô como um simples computador, a resposta seria negativa. Mas o andróide que estou propondo poderia reunir o potencial humano e o do gravador de automóveis, criando um ser capaz de atenuar sua depressão, flexibilizar a própria cintura ou mesmo participar dos últimos segredos de Estado no Brasil. Bastaria converter as fitas em pílulas e tomá-las no momento exato.
O único problema é a overdose, mas nosso andróide teria um dispositivo para desligá-lo. Dessa maneira, voltaria rápido à normalidade.
Sinto que a velha livraria vai fechar e ainda não resolvi um problema capital: o que faria o andróide com as mãos liberadas do pesado fardo do computador?

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