São Paulo, terça-feira, 26 de dezembro de 1995
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O bem e o mal vacilam entre Rio e SP

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Vários chatos na ponte aérea já me disseram: "Por que você não escreve sobre Rio e São Paulo?". Nunca escrevi, porque este tema é a pior forma de maniqueísmo, assunto letal de fim de noite, quando todas as piadas já acabaram. Pior que "homem e mulher", pior que "Picasso ou Bracque", pior que "Beatles ou Rolling Stones". Mas, agora, a disputa Santos x Botafogo acendeu a rivalidade. Atendendo a pedidos (já que é fim de ano), resolvi aceitar o tema. Vamos a isto.
"A pior forma de solidão é a companhia de um paulista" (N. Rodrigues).
"A pior forma de ilusão é a simpatia de um carioca" (eu).
Em São Paulo, se você bobear, vira escravo. No Rio, se bobear, vira vagabundo.
O carioca está deprimido e não sabe. O paulista é maníaco e não sabe.
Em São Paulo, os milionários trabalham. No Rio, moram em Paris.
Em São Paulo, o contrário do burguês é o proletário. No Rio, o contrário do burguês é o boêmio.
Carioca acredita no espírito carioca. Paulista acredita na matéria.
São Paulo é Carandiru. Rio é Vigário Geral.
No Rio, Comando Vermelho. Em São Paulo, é a Rota.
No Rio, só os criminosos são práticos e organizados, como os paulistas.
Em São Paulo, o criminoso ainda está fora do processo produtivo.
Em São Paulo, o crime é free lance. No Rio, o crime é empresa. Ou seja, no Rio o crime é paulista. Em São Paulo o crime é carioca.
São Paulo é um filme americano. O Rio é um filme brasileiro.
O Rio é ficção. São Paulo é documentário.
Mas, de certa forma, o Rio é nossa verdade e São Paulo, nosso sonho. O Rio é o trailer do Brasil. O Rio é o que seremos. São Paulo é o que poderíamos ter sido.
A miséria no Rio é dentro. Em São Paulo, é fora.
No Rio, a miséria é no alto. Em São Paulo, é embaixo.
Em São Paulo, há menos miséria; mas a miséria é mais miserável. No Rio, a miséria já deu samba. Em São Paulo, miséria não dança.
Na favela de São Paulo, ninguém existe. A favela do Rio tem desejos.
No Rio, a miséria vive em Ipanema. Em São Paulo, não entra no Morumbi.
Miserável ganha melhor em São Paulo. Mas miserável é mais feliz no Rio.
O "cash flow" dos mendigos é melhor em São Paulo. Mas no Rio ele se sente em casa.
Se eu fosse miserável, preferia morar no Rio.
Em São Paulo, polícia é polícia; bandido é bandido. Já no Rio...
No Rio, temos medo dos miseráveis. Em São Paulo, horror.
O Rio é Matisse e Munch (no mesmo quadro). São Paulo é Marcel Duchamp.
No Rio, os motéis estão por toda a parte. Em São Paulo, os motéis são na Via Dutra.
No Rio, sexo é prazer. Em São Paulo, é pecado (mas excitante).
Todo paulista tem amante. Todo carioca come alguém.
No Rio, as putinhas têm prazer. Em São Paulo, são frias.
No Rio, há "cafe society". Em São Paulo, Café Photo.
São Paulo foi inventada por Paulo Cotrim há trinta anos, no João Sebastião Bar. Antes, só tinha careta. São Paulo descobriu que era livre naquele bar mítico, onde nasceram a bossa nova e os gays. Depois veio a ditadura.
Quinze anos depois, na Ipiranga com a São João, São Paulo foi redescoberta por um baiano.
Antes de Caetano, São Paulo não sabia que existia. São Paulo tinha complexo. Agora, o Rio tem inveja.
O carioca virou um baiano sem tradição. O paulista é um aspirante a americano.
Todo carioca ama o Rio, mas joga papel no chão e avança o sinal. Paulista respeita o farol.
No Rio, as mulheres são mais sensuais. Em São Paulo, são mais sacanas.
No Rio, há nudez, com menos desejo. Em São Paulo, muita roupa, com mais tesão.
No Rio, as mulheres são cínicas. Em São Paulo, são românticas.
O Rio é histérico. São Paulo é obsessivo.
Paulista é mais sério que carioca. Por isso, pode até acabar com você.
Em São Paulo, filho da puta é filho da puta. No Rio, como saber?
Paulista odeia críticas. Carioca odeia autocríticas.
O Rio é a "dialética da malandragem". São Paulo é Antonio Candido.
O Rio é vagabundo. São Paulo é lúmpen.
O Rio é Oswald de Andrade. São Paulo é Mario de Andrade.
São Paulo é PT. O Rio é PMDB. Mas o Rio é socialista. São Paulo, neoliberal.
Rio é meio-dia. São Paulo, noite ilustrada.
O Rio é associativo. São Paulo, sequencial.
O Rio é eu. São Paulo, os outros.
O Rio é católico. São Paulo, protestante.
O Rio é esquizofrênico. São Paulo, paranóico.
O Rio se acha superior ao resto do Brasil. São Paulo é superior.
O Rio é samba. São Paulo é USP.
Quem deixou o Rio ficar deste jeito? Foi a ausência de paulistas.
Carioca fala dos problemas da cidade como se todos fôssemos vítimas. São Paulo fala dos problemas como se os outros fossem culpados.
No Rio, há contos do vigário. Em São Paulo, bons negócios.
No Rio, são todos amigos. Em São Paulo, todos são puxa-sacos.
O carioca se ilude com a paisagem. Paulista se ilude com a avenida Paulista.
Paulista gosta de carioca. Carioca não gosta de paulista.
Carioca não te convida para jantar. Paulista convida, para te jantar.
Carioca pensa que ainda é criativo, mas está apenas mal-informado.
Todo o poder está em São Paulo. No Rio, todo o poder está na Globo.
O "Reage Rio" devia se chamar "Faça Autocrítica, Rio!"
No Rio, Tom Jobim acabou virando um parquinho. Em São Paulo, Tom virou buraco do Maluf.
São Paulo é o túmulo do samba. O Rio é o túmulo do Santos.
No Rio, estamos diante de uma saudade. Em São Paulo, tudo é fato consumado.
Carioca pensa que sabe gozar a vida. Paulista aumenta a produtividade.
O Rio é um feriado. São Paulo é uma segunda-feira.
No Rio, todos são funcionários públicos, aposentados ou psicólogos. Em São Paulo, todos são publicitários, gerentes de marketing ou psiquiatras.
O Rio é insolúvel. Em São Paulo, o insolúvel é mais organizado.
SP é Prozac. Rio é maconha.
O Rio é viado. São Paulo é "drag queen".
No Rio, só tem otário. Em São Paulo, só tem malandro.

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