São Paulo, terça-feira, 26 de dezembro de 1995
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Chinesa enfaixa pé para atrofiá-lo

JAIME SPITZCOVSKY
DE PEQUIM

Algumas mulheres chinesas, todas com idade avançada, carregam ainda a marca de uma opressão à população feminina que desapareceu apenas nos anos 40: enfaixar os pés desde a infância, para que eles ficassem atrofiados.
Pés pequenos eram símbolo de erotismo na China imperial e também confinavam as mulheres aos limites da casa, pois elas tinham dificuldades para se locomover.
O governo comunista procura esconder a marca deixada pelo regime imperial, considerando-a uma "mancha na história". As vítimas dessa tradição, sua maioria na casa dos 80 anos, costumam evitar falar sobre seu passado.
Mas Shi Yuexia concordou em conversar com a Folha. Foi a única a concordar, entre dez mulheres consultadas, e, num ato raro na China atual, deixou que seu pé fosse fotografado.
Pés atrofiados devem ser escondidos, prega o ideário comunista. Museus chineses não mostram os sapatos, que chegavam a ter apenas oito centímetros de comprimento.
Filmes que retratam a China imperial, feitos com o aval do governo, nunca mostram mulheres com as faixas ou com dificuldades para se locomover.
Trata-se de um esforço para apagar da memória a prática que confirmava a submissão da mulher condenada ao trabalho doméstico.
"Eu não podia passar do portão", lembra Shi Yuexia, 84. Os pés atrofiados faziam com que ela caminhasse lentamente, numa tentativa de amainar a dor que não deixava esquecer a prática imposta por sua mãe.
Como heranças atuais, Shi Yuexia carrega a dor que insiste em acompanhar seus pés, a dificuldade para caminhar e para achar sapatos. "Não existem sapatos para nós", conta ela, que calça 30. "Ou fazemos nós ou compramos modelos para crianças".
Filha de camponeses, Shi Yuexia nasceu em Baoding, um vilarejo a 200 km de Pequim, na província de Hebei (nordeste). "Minha mãe, que também tinha os pés pequenos, começou a enfaixar os meus pés quando eu tinha 7 anos", rememora ela.
O hábito impunha um ritual dolorido. Shi Yuexia conta que chorava sempre que sua mãe enfaixava seus pés, por não aguentar a dor. "Muitas vezes", recorda ela, "eu tentava tirar os panos, mas quando conseguia, minha mãe me batia muito".
Sua mãe argumentava que mulheres com pés normais não conseguiam se casar. Os homens chineses não se interessavam por elas.
Em 1928, com 17 anos, Shi Yuexia se casou. Ela continuou enfaixando os pés, conforme rezava a tradição, mas desrespeitando as leis da nova China republicana.
Desde a queda da dinastia Qing (pronuncia-se "tchin") em 1911, estava proibida a prática de enfaixar os pés, mas a tradição resistia nas áreas rurais, como na Baoding de Shi Yuexia.
Seu marido concordou com o fim desse costume imperial apenas em 1949, quando os comunistas chegaram ao poder, liderados por Mao Tse-tung.
O novo regime prometia, além da emancipação da mulher, ser implacável na repressão a "heranças do período feudal".
Em 1954, a família se mudou para Pequim, e Shi Yuexia permaneceu em casa, cuidando dos três filhos. Seu marido, hoje com 86 anos e saúde bastante debilitada, trabalhava como metalúrgico.
Atualmente, Shi mora com seu filho mais velho, na região oeste de Pequim. Além de cuidar do marido, passa tardes conversando com sua vizinha Zhang, 87. Essa também tem os pés atrofiados.

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