São Paulo, domingo, 31 de dezembro de 1995
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Balanço

PAUL SINGER

A esquerda reencontrou o chão social e político debaixo dos pés
1995 não deixa de ser um ano estranho. Começou com a crise do México, contaminando a Argentina e o Brasil, e termina com greves e demonstrações de massa em Paris, impasse orçamentário em Washington e a vitória eleitoral comunista na Polônia e na Rússia.
No Brasil, 1995 começou euforicamente com a posse do novo presidente, sustentado em confortável maioria eleitoral e no sucesso do Plano Real, que reduziu a inflação e acelerou o crescimento. E termina com crise bancária, escândalo do Sivam e tiroteio aberto entre lideranças situacionistas e a diretoria do Banco Central. Ao que tudo indica, a grande celebração conservadora do fim do século parece sujeita a alguns tropeços.
Todos esses acontecimentos têm algo em comum. Eles dão testemunha de que o admirável mundo novo, prometido pela abertura dos mercados e desmantelamento dos sistemas de seguro social, também tem os seus lados sombrios, a massa crescente de excluídos, desassistidos, de arruinados.
O mundo de plena e ilimitada liberdade econômica sofre de uma estranha vocação: dividir-se em ganhadores e perdedores, em beneficiários de novos mercados, novas oportunidades, novos estilos e embevecimentos e em destituídos de empregos, de capital, de chances de competir, de estudar, de consumir...
No Brasil, os excluídos se organizam em movimentos "sem: sem-terra, sem-casa, sem-escola. A modernização conservadora multiplica os "sem e ao mesmo tempo os abandona, ao cortar o gasto social, os benefícios previdenciários, os direitos trabalhistas.
A utopia liberal é avessa ao estado que tributa os ganhadores para dar alguma coisa aos destituídos. Não se trata de avareza, mas de lógica: o estado redistribuidor destrói incentivos, ao punir fiscalmente quem ganha porque serve melhor o público e ao beneficiar quem perde porque fracassa na competição. É como se, no fim de cada rodada do campeonato de futebol, a "federação tirasse pontos dos times vencedores e os desse aos derrotados...
O liberalismo triunfante acusa o Estado-previdência de desestimular os pobres a que ajudem a si mesmos, ao torná-los dependentes de subsídios, de alimentos e serviços gratuitos etc. E acusa o salário mínimo e demais garantias trabalhistas de causar desemprego e inibir a competitividade internacional do país. É como pensam os que vencem no jogo capitalista, que não por acaso são quase sempre os detentores de capital.
Se a quantidade de destituídos e excluídos do jogo econômico fosse insignificante, uma exceção à regra, então, paciência. Mas dados referentes à maioria dos países que estão mergulhados na modernização conservadora indicam o contrário: cresce o número de desempregados, dos jovens que se evadem das escolas ou nada aproveitam delas, dos destituídos de moradia, de renda, de esperança.
O capitalismo que volta à sua origem, sem os freios que as lutas populares lhe tinham imposto, mostra-se instável e propenso a buscar o lucro máximo, mesmo que for à custa de regiões, setores produtivos e mesmo nações inteiras.
O ano que acaba parece indicar que os perdedores estão deixando de se resignar e partem para lutas de resistências e reações eleitorais, que são, acima de tudo, surpreendentes. Se elas se difundirem, a marcha da história pode estar mudando de direção.
A luta dos ferroviários e estudantes franceses tem a mesma motivação que a resistência do presidente Clinton à política fiscal dos republicanos. Que é também a motivação dos eleitores poloneses e russos, que preferem os antigos comunistas aos candidatos que há poucos anos os libertaram do comunismo.
No Brasil, as reformas que eliminaram monopólios estatais foram aprovadas, mas as reformulações da previdência e do estatuto do funcionalismo -ambas destituindo trabalhadores de seus direitos- estão encontrando crescente resistência. É interessante notar que, mesmo em países em que recentemente a direita ganhou eleições, como os EUA, a França ou o Brasil, a maioria da população simpatiza e apóia os que resistem às "reformas.
1995 não registra vitoriosos e derrotados. A correlação de forças entre a direita liberal em ofensiva e a esquerda socialista ainda em processo de redefinição não mudou. Mas, o que em fins de 1994 e começo deste ano parecia ser um jogo decidido antes mesmo de ser disputado, transformou-se (vale a pena repetir), surpreendentemente, num embate. A esquerda, ainda sem programa claro, reencontrou o chão social e político debaixo dos pés. A partir daí, poderá andar. E quem sabe, ao andar, encontre o caminho.

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