São Paulo, quarta-feira, 1 de fevereiro de 1995
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'Assédio Sexual' expõe mágoa masculina

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Mesmo quem não viu já sabe: o pior filme da temporada é "Assédio Sexual", com Michael Douglas e Demi Moore. Mas não é tão ruim assim. Funciona como filme de suspense; ou melhor, neste gênero novo que é o do suspense empresarial —rivalidades e traições na diretoria de uma grande corporação americana, em vez de crimes misteriosos numa cidadezinha do meio-oeste.
Como sempre, torcemos pelo mocinho —Michael Douglas; esperamos que no final a justiça prevaleça; que um ou dois enigmas do roteiro sejam solucionados; que os personagens tenham inteligência e controle de nervos; que as situações, cada vez mais tensas, se resolvam de modo satisfatório.
"Assédio Sexual" é um filme como outro qualquer. O problema, como todos sabem, está em seu ponto de partida. A belíssima Demi Moore, no papel de vilã e de chefona numa fábrica de computadores, quer que seu subordinado Michael Douglas faça sexo com ela. Ele não aceita e passa a ser perseguido no serviço.
Estamos assim diante de um caso de "sexual harrassment"; só que invertido —não mais o "big boss", charuto na boca, bolinando sua inocente secretária, perseguindo-a em volta da mesa, enquanto telefones tocam sem resposta; não mais o sátiro careca, horror salivante das feministas; não mais o arrogante filho do patrão; não mais a loirinha de óculos, inocente das próprias curvas do vestido, ingênua no beicinho onde apóia o lápis a cada dúvida de ortografia, não mais o bloquinho de recados equilibrado nos joelhos estupendos.
Mas sim Demi Moore e Michael Douglas. Ela, a pantera vestida de negro, manipuladora de homens, objetiva em seu desejo de sexo e de vingança; a Juno dos romanos; gélida e vulcânica; misto de torrefadora de café e coqueteleira atômica.
Com a energia de um eletrodoméstico Walita, Demi Moore encontra Michael Douglas, o homem-iogurte. Saudável, regrado em seu desjejum de cereais, bom marido, nada sedutor, branco azedo, ei-lo às voltas com uma perigosíssima liquidificadora sexual de último tipo.
É claro que o filme fica ridículo. Na cena do, digamos, quase-estupro de que Douglas é vítima, a música se torna dramática; pano de fundo para invasão de helicópteros no Vietnã? Aparição do vampiro de Dusseldorf? Ataque dos ninjas assassinos? Não. É Demi Moore.
Inevitável perguntar: mas como? Como é que o viril Michael Douglas faz tanta questão de recusar os favores, ou exigências, sexuais de Demi Moore? Por que não escolheram uma Glenn Close para o papel? Alguma mulher tipicamente com cara de bruxa? E por que não ter escolhido, no papel masculino, um garoto frágil e bonitinho, em vez do intrépido Michael?
Fica a impressão de que o filme apostou alto demais em suas próprias possibilidades de convencimento. Um confronto, digamos, entre Glenn Close e Tom Cruise seria clichê demais. E, como "Assédio Sexual" quis trabalhar com o "anticlichê" —não o homem assediador, mas o homem-vítima—, temos Michael Douglas e Demi Morre.
Não deu certo, é claro. Tudo fica implausível. Mas o que é implausível, na superfície do filme, ganha um significado mais interessante na realidade, se quisermos especular um pouco.
Começo pelo tipo físico dos dois atores. Demi Moore é, sem dúvida, muito bonita. Mas não é aquela beleza de deixar o sujeito maníaco de desejo. Não é a bomba sexual da Sharon Stone. Não animaliza o próprio sexo. Não é um mito, não explode em hormônios e mistérios, como Ava Gardner; em malícia inocente e opulência burra como Marilyn Monroe; em selvageria dócil como Brigitte Bardot; em esportividade erótica como Julia Roberts.
Demi Moore pertence a outra categoria de atrizes, as que são lindas sem serem sex-symbols. Audrey Hepburn, Jean Seberg, Gene Tierney, Greta Garbo. Mas estas eram, e são, mitos —não mitos "sexuais", mas mitos "do cinema". Demi Moore não chega a tanto.
Corresponde a uma nova beleza: a que, numa era feminista ou pós-feminista, exige o mínimo de provocação sexual ao lado do mínimo de fragilidade. A beleza de Demi Moore é, assim, como que "lavada"; desprovida de dengues virginais e de palpitações respiratórias.
Não é nem mesmo a frieza sexy de Uma Thurman, a perfeição de Ingrid Bergman, a americanidade eugênica de Grace Kelly. Demi Moore é a beleza objetiva, a beleza de uma sociedade em que a beleza feminina foi reprimida enquanto critério de avaliação. É uma beleza sem "eterno feminino" voejando em volta dela. É uma "pessoa" bonita, não uma "mulher" bonita.
Diante dessa beleza sem mito, desta Medéia sem feitiços, braceja, como um Ulisses que não sabe nadar, o tipo apalermado que é Michael Douglas. O papel que ele representa, neste filme, tem uma linhagem. Pensamos no bem-comportado cirurgião que era Harrison Ford, à procura de sua legítima mulher, no filme de Polanski ("Busca Frenética"); em Nick Nolte; no próprio Michael Douglas, amedrontado e babante em "Instinto Fatal".
São homens domesticados pelo feminismo, mas que ainda assim mantêm o biótipo machão. Nada de transgressores charmosos, como Robert de Niro, Richard Gere, Jack Nicholson, Mickey Rourke; nada de bonitinhos como Tom Cruise, Matthew Broderick, Keanu Reeves. Nada de velhos símbolos sexuais como Robert Redford ou Paul Newman.
Michael Douglas corresponde ao tipo meio idiotado, mas seguro, que convém ao dinamismo da mulher moderna. Seu principal tique, como ator, é o de fazer a boca maior do que é: põe o queixo para frente de modo a ressaltar o lábio inferior, constituindo um beiço que não é de choro, mas sim de virilidade revoltada, de vitimismo vingativo, proclusão de silêncio corajoso.
Não mais o galã embaraçado (Cary Grant), o aristocrata arrogante (Laurence Olivier), o desentendido simpático (James Stewart), o desajustado sensível (James Dean), o bruto chorão (Marlon Brando), o americano bem-feito (Robert Redford), o latin lover —Michael Douglas é o macho-vítima: como se fosse um daqueles gordos sempre desprezados pelas mulheres, depois de várias passagens por spas e depois de alguma lipoaspiração; ainda complexado, mas já bacanão.
O ridículo de "Assédio Sexual" se explica, talvez, por razões alheias ao próprio filme e às próprias congruências de roteiro. Querendo pôr à prova um problema atual —relação entre homens e mulheres diante da ascensão profissional destas últimas— cai na implausibilidade.
Implausibilidade que não é tanto a de seu tema —o assédio de uma mulher sobre seu subordinado— quanto de sua linguagem.
Como se, revoltados diante da realidade que pretendiam retratar, seus produtores tivessem, numa canalhice estética inconsciente, estragado com especial ridículo e com especial sentido de ênfase o filme que quiseram vender: na humilhação e posterior triunfo de Michael Douglas, na beleza excessivamente inteligente —e por isto voltada ao fracasso— de Demi Moore, o que temos é um sintoma, especialmente inábil e tolo, dos justos ressentimentos do homem americano frente a mulheres mais inteligentes, e nada feias. Fato esse —ser mais inteligente que o homem americano— nada difícil.

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