São Paulo, segunda-feira, 6 de fevereiro de 1995
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Virar racista por aqui é uma coisa muito fácil

MARCELO PAIVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Eu não sou racista. Pelo pouco que você me conhece, já deu para perceber. Não sou porque não existe razão para ser. Como a maioria dos brasileiros, não separo o mundo em brancos, negros, amarelos ou azuis.
Separo o mundo em bom e mau caráter, evito filhos de uma égua, desprezo comentários preconceituosos, respondo com grosseria quando me chamam de aleijado, acredito que os pobres devem tomar na marra o que é dos ricos e defendo a prisão perpétua para a corrupção, especialmente no Brasil.
Não sei que diferença existe entre um escritor branco e um negro; sei que existem negras lindíssimas, como existem brancas lindíssimas; sei que existe uma autêntica cultura negra, do blues ao jazz, do soul ao funk, do rap ao hip hop, que encontra sintonia na música brasileira (samba); e sei que existem grandes blueseiros brancos e que Noel Rosa, Adoniran e Tom Jobim eram mais branquelos que minha avó.
Um goiaba daqui escreveu um livro ("Bell Curve") que diz que o negro, geneticamente, é menos inteligente que o branco. Mas Machado de Assis era negro. Para falar a verdade, que saco esta discussão!
Mas desde que vim para cá, sinto no ar um movimento constante para me tornar racista. E quem me empurra para este buraco é a maioria dos negros americanos; aqueles que não cumprimentam branco, não falam com branco, evitam o contato, não olham na cara e não respondem às perguntas. Quer detalhes?
Sophia é jamaicana, faz mestrado no departamento de Ciência Política e é uma coisa de bonita. Almoçamos juntos uma vez. Reclamou que os brancos não falam com ela —nem olham pra ela— e que eu era diferente. Até o dia que meu vizinho, negro, deu uma festa e só negros foram convidados. Encontrei Sophia na calçada, que nem me cumprimentou porque eu era branco e ela estava com seus amigos negros.
Este vizinho, outro goiaba, nunca me cumprimenta, nem responde às minhas perguntas, apesar de diariamente nos encontramos e de eu insistir com o meu "hi". Não cairei nesta armadilha. Sou brasileiro e irei resistir, com a bênção do Senhor do Bonfim.

MARCELO RUBENS PAIVA está em San Francisco (EUA) como bolsista da Knight Fellowship, na Universidade de Stanford

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