São Paulo, sexta-feira, 10 de fevereiro de 1995
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Fernando Henrique procura anistia social

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Sarney enrolava-se no poder, como um gato gordo perto do aquecedor; tinha algo de Garfield em seu sorriso com bigodes. Itamar ciscava em volta da Presidência, como um galináceo apressado. Collor agia como um alpinista, aspirando o ar rarefeito dos altos cumes, sem perceber o gelo escorregadio sob os pés. E Fernando Henrique? Ele parece totalmente à vontade, como um professor que reencontra seus velhos alunos depois de uma temporada de férias.
Na faculdade, assisti uma única vez a uma aula de Fernando Henrique. Não me lembro de muita coisa que ele disse.
Aliás, isso merece comentário. Ficou famosa a frase, apócrifa ou não, segundo a qual FHC pedia a um público de empresários: "Esqueçam tudo o que escrevi". Meu comentário é apenas o seguinte: afinal, o que foi que ele escreveu? O que foi que ele disse? Eu já tinha esquecido antes mesmo do pedido que ele fez...
Bem ou mal, lembro-me de sua atitude, na aula que deu no Departamento de Ciências Sociais. Simpaticão, bem-humorado, sentou-se sobre a mesa. Era um informal. Ainda hoje é. Como estava bem!
Deve ter feito alguma retrospectiva histórica —já se disse que a sociologia é apenas uma história mal contada— a respeito da "transição" democrática. Seu último livro (ed. Siciliano) oferece exemplos dessa habilidade generalizadora e anódina, descritiva e abstrata.
Mas Fernando Henrique se sentou na mesa. Sorridente, charmoso. Graças a Deus, lembro-me só de duas coisas que ele disse. A primeira foi: "Na abertura política, até a alta burguesia tinha a ganhar. Queria, pelo menos, o fim da censura à 'Playboy' ".
Risinhos na platéia.
Depois, não me lembro por que, Fernando lançou-se a um elogio espantoso. Citou aqueles autores que, na gíria vigente nas ciências sociais, eram conhecidos como "os três porquinhos": Marx, Weber, Durkheim. Os três grandes teóricos da sociologia, cuja leitura era obrigatória no primeiro ano de faculdade.
Em cima da mesa, FHC citou os três nomes sagrados, com sotaque levemente carioca. "Diárrkaim".
"Gigantes! Gigantes!". Esta a única frase marcante de FHC naquela ocasião. Imaginava o nariz tuberoso de Weber, a barba arredondada de Marx, o pincenê duro de Durkheim, esculpidos nas montanhas do Rushmore: imortalizadas em granito americano.
Gigantes! Gigantes! Dizem de Max Weber que acumulou uma erudição sem precedentes no século. Fernando Henrique não era um gigante. Fazia o papel de alguém acostumado aos cinismos da classe alta (vide seu comentário sobre a "Playboy") e de alguém lúcido em questões de socialismo e/ou progresso social.
Toda sua ciência —da qual nem nós nem ele nos lembramos— parece reduzir-se, hoje em dia, a essa atitude de bem-estar. Refestelado na poltrona presidencial, ele repete: "Gigantes! Gigantes!" entre uma e outra audiência com Antônio Carlos Magalhães e José Sarney.
Todo esquerdista, todo antigo exilado deveriam ter alguma predisposição para a vingança. Desde a festa da posse, desde os modelitos e os smokings, desde a ausência de veto à anistia de Lucena, Fernando Henrique parece se comportar de outro modo.
É como se fizesse questão, antes de tudo, de demonstrar seu traquejo social. Sabe distinguir entre uma e outra marca de champanhe. Embica os lábios na pronúncia correta do francês.
Ou seja, não é nenhum rastaquera, nenhum arrivista de esquerda, nenhum sindicalista com desodorante. Foi apenas um injustiçado das "elites". Hoje pode conversar sobre cinema com Jarbas Passarinho, jogar biriba com Bresser e Lucena, trocar opiniões literárias com Sarney e Jorge Amado.
Estamos diante, assim, de um arrivismo mais sofisticado e orgulhoso. "Não sou nenhum dinossauro esquerdista", parece dizer Fernando Henrique. Nosso presidente está procurando uma nova anistia. Não aquela, política, dos anos 80. Mas a anistia social, que permite sua circulação entre empresários fascistas, governadores patriarcais, almirantes, brigadeiros, senadores.
"Finalmente, faço parte do Sistema." Eis o triunfo de Fernando Henrique. Dá-se bem no Palácio da Alvorada. Não é alguém que, vindo das urnas, veja-se no papel de fazer vingança, de reformar costumes políticos, de desprezar os Sarneys e ACMs.
"Gigantes! Gigantes!" —a frase de FHC ecoa em meus ouvidos. Até Humberto Lucena dobra o presidente. E FHC exterioriza sua felicidade, ao sentir-se finalmente admitido no clube que o excluiu de circulação.
"Gigantes! Gigantes!": ele deve estar pensando em Humberto Lucena e José Sarney.

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