São Paulo, sábado, 11 de fevereiro de 1995
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Crônica de uma tragédia anunciada

MIGUEL JORGE

Nenhuma empresa, pequena ou grande, é uma ilha. Ela faz parte da sociedade e tem com ela —além de seus acionistas, seus empregados, seus fornecedores, seus consumidores— muitas responsabilidades sociais que não pode ignorar.
Certamente, esse é um dos momentos em que, acima dos interesses do lucro, estão os interesses nacionais. Um desses, fundamental para todos os brasileiros, é a estabilização econômica.
Em nome dessa estabilização, torna-se necessário —obrigatório até, diria— que se aceite a elevação das alíquotas dos veículos importados, fator importante para se reduzir a verdadeira sangria que poderia ocorrer com a prevista importação de cerca de 500 mil unidades este ano. O exemplo do México mostra o que pode ocorrer quando, em nome de uma suposta felicidade geral da nação, as autoridades deixam de tomar providências que, na aparência, revestem-se da mais antipática atitude.
A televisão mostrou o drama dos milhares de mexicanos que tomam conta das ruas das cidades, protestando contra a brutal perda de seu poder aquisitivo, o repentino empobrecimento que devastou as famílias, dos milhares de empregos que desapareceram como poeira, contra o fechamento de centenas de fábricas espalhadas pelo país.
Esse processo dramático que deixou o México de joelhos perante o mundo ocorreu em não mais de três meses —e grande parte dele pode e deve ser creditado à inação do governo.
No Brasil, atribuiu-se a uma ação lobista das montadoras a decisão de se elevar a alíquota de importação que, de forma abrupta e sem explicações, fora reduzida de 35% para 20% no último setembro. Os resultados imediatos dessa irresponsabilidade podem ser observados por qualquer um que olhar as estatísticas de importação de veículos desde que o país se abriu ao mundo.
Em 1992, foram 4,2% do total das vendas internas, chegando a 7% e 12%, em 93 e 94 — e, neste último ano, elas saíram de 4.900 unidades em janeiro para 22 mil em dezembro, num total de cerca de 190 mil nos 12 meses. Projetavam-se cerca de 500 mil unidades para este ano, número perfeitamente possível, pois só nos últimos meses os grandes times desse jogo de gente grande —as montadoras aqui instaladas com megarredes de revendedores— entrariam em campo.
Não, nunca tratou-se de terrorismo, mas trata-se ainda, apenas e tão-somente, de guerra pelo mercado, numa disputa que se acirra cada vez mais na luta por pontos de participação. Outros críticos afirmam que o consumidor, esse coitado, dizem, não foi ouvido, e terá que pagar mais pelo produto importado.
Verdade que haverá um aumento no preço desses produtos. Mas essa é uma verdade maior e mais profunda, nua e crua, é essa: a prioridade absoluta é cuidar da sobrevivência do consumidor de hoje. A visão curta, estreita e burra dos que enxergam apenas a ponta do nariz não deixa ver que o porre de hoje pode ser a enorme, profunda ressaca de amanhã que nos deixará a todos, especialmente os consumidores, com o direito de, com as calças de bolsos vazios nas mãos, sairmos às ruas gritando e esperneando contra quem nada fez para evitar a crônica de uma tragédia anunciada.

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