São Paulo, terça-feira, 14 de fevereiro de 1995
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'Salam Cinema' leva iranianos ao delírio

LEON CAKOFF
ENVIADO ESPECIAL A TEERÃ

Mohsen Makhmalbae, 37, é o maior ídolo do cinema iraniano. Seu novo filme, "Salam Cinema", apresentado no 13º Fajr International Film Festival de Teerã, tem provocado tumultos nas portas dos cinemas e levado as platéias ao delírio nas projeções.
O filme foi apresentado com dois cortes na trilha sonora na sessão reservada aos convidados estrangeiros. Na sessão pública toda a sequência de dez minutos é vista sem o som mas sob intensa vaia da platéia. O trecho censurado mostra uma candidata a atriz que diz querer usar o cinema como pretexto para ser vista e reencontrar o namorado no exterior.
"Salam Cinema" é uma homenagem ao centenário do cinema. Talvez a mais original do ano. O filme documenta o desespero das pessoas em querer imortalizar-se através do cinema. Ele mostra as consequências de um anúncio a candidatos a atores que atraiu mais de cinco mil para os testes.
Makhmalbae rodou mais de 12 horas de negativo e montou duas versões do mesmo filme: uma para o cinema, com 94 minutos, e outra para a TV. De três horas, onde escracha os piores candidatos. O resultado desta incômoda radiografia popular é fascinante e cruel.
O cineasta é conhecido no circuito internacional de festivais pelos filmes "O Ambulante" (1985), "O Ciclista" (1989) e "Era uma vez o Cinema" (1993). A marca de "Salam Cinema" é a do improviso total. Parece um drible na censura que o Ministério da Cultura Islâmica aplica ao cinema.
Depois de ter dois longas ("Tempo de Amor" e "As Noites do Rio Zaradeh", de 1991) e 30 roteiros proibidos, Makhmalbae fez um dos 'filmes do ano' sem roteiro, da observação da imprevisível reação das pessoas a um teste para um filme que não existe. O teste é o mesmo.
Ele falou com exclusividade à Folha, em Teerã, depois de dois dias de muita tensão acompanhando os tumultos para assistir "Salam Cinema".

Folha - Há sempre personagens obstinados em seus filmes, perseguindo coisas impossíveis. Este é um motivo para ser censurado?
Makhmalbae - Devo dizer que a minha maneira não é a mais educada de se fazer cinema, meus personagens são movidos pela ignorância. É para combater a ignorância que abandonei a política. Já fui preso, já me envolvi com a organização pela propagação da revolução islâmica (que completa 16 anos neste dia 11) até me convencer que o povo precisa de cultura e não de política.
Folha - Abbas Kiarostami diz num recente documentário para a TV francesa que o povo sente uma atração magnética por uma câmera. Ele quer ser registrado mesmo sabendo que vai aparecer na sua condição mais miserável, não sabendo quando ou onde. O que você acrescenta a esta observação?
Makhmalbae - O povo mesmo não sabe a razão da sua loucura pelo cinema. Aqui, depois da revolução (Islâmica), o povo ainda não encontrou o seu papel. Só no cinema. Por isso há tanta gente querendo ser ator e atriz. Devo acrescentar que mesmo maus papéis servem para revelar a bondade das pessoas.
Veja o caso da moça que diz no teste que não está lá para ser atriz, ou melhor, que se fosse atriz poderia ser convidada a um festival no exterior e rever o seu amor. Para ela o cinema é um salto para um mundo ainda mais fantasioso. E não é que com a sua imprevisível audácia ela marcou um gol?
Aqui estamos falando do sonho duas vezes censurado de uma candidata: do amor e do cinema. Não é incrível? No meio de cinco mil pessoas apareceu uma pessoa que conseguiu separar o 'amor' do 'cinema'...
Folha - Numa nota sua divulgada há duas semanas no festival de Roterdã, você dizia que a censura a "Salam Cinema" o deixava desanimado para prosseguir filmando. Vemos aqui que você já está envolvido em mais uma produção (documentário "Gapu", sobre mulheres que revelam na arte da tapeçaria tudo que sonham).
Makhmalbae - Naquele momento não via motivos para provocações. Agora, para exportação, o filme está liberado. Aqui no Irã acredito que os 10 minutos que foram suprimidos acabem voltando. A reação das pessoas nos cinemas quando passa o trecho sem som é de muita indignação.
Eu não consigo parar de refletir sobre a vida das pessoas no Irã. Lá fora pensam que só fazemos política, que o nosso povo é agressivo, guerreiro, terrorista, o que não é verdade. O povo é sempre sensível e comprometido com a vida.
Em nossos filmes somos felizes e não sentimos solidão. Veja, ao contrário, o que se passa nos filmes de Bergman e Antonioni, veja quanta solidão eles revelam. Tenho a impressão que o Ocidente todo, e por onde a tecnologia se espalhou, o maior sofrimento das pessoas é provocado pela solidão.
Folha - Muitos cineastas iranianos fazem filmes com crianças e com atores não profissionais escolhidos no norte do país. Pode explicar o motivo?
Makhmalbae - Eu também sinto mais identidade com as aldeias do que com a cidade. Lá a cultura existe e a política, não. Gostamos das crianças como elas se relacionam entre elas e não como os pais as tratam dentro de casa.
As crianças precisam e querem se comunicar embora o universo adulto signifique quase sempre uma barreira para elas. As crianças nos permitem a passagem para vários mundos diferentes ao invés de estarmos sós, e ser criança não tem nada a ver com a idade real das pessoas.
Um rei da pérsia já foi a criança de um filme meu ("Era uma vez o Cinema"). No começo o rei é o político e o grande censor do seu império. No fim ele larga tudo pela paixão ao cinema.

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