São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 1995
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Era perigoso, porém mais fácil...

ROBERTO CAMPOS

O fim da Guerra Fria foi uma espécie de desregulamentação geral

"Para as grandes coisas, são necessários princípios, para as pequenas, basta a misericórdia"
(Albert Camus)

Giorgi Arbotov, perito do Kremlin em relações com o Ocidente, disse, de certa feita, que os russos estavam preparando para os americanos uma surpresa terrível: privá-los-iam de inimigos. Era mais do que uma piada.
A ameaça de confrontação nuclear das superpotências, num clima de exacerbado conflito ideológico, era perigosa, porém simplificadora. Do lado soviético, possibilitou ao Kremlin asfixiar movimentos nacionalistas, seja no seio da União Soviética, seja nos países adjacentes (hoje chamados de "exterior próximo"). Do lado ocidental, o objetivo da "contenção do comunismo" tornou-se um paradigma. Equivaleu, de certa forma, a uma regulamentação geral de comportamento, face à qual outros conflitos foram relegados a posições secundárias. Na implementação deste paradigma, houve grandes gestos, como o Plano Marshall, a criação do Mercado Comum Europeu e da Otan. Travaram-se duas guerras: na Coréia e no Vietnam.
O fim da Guerra Fria foi, assim, uma espécie de desregulamentação geral. No mundo socialista, ocorreram três desintegrações: a desintegração política, pela irrupção de nacionalismos e descomunistização na Europa oriental; a desintegração econômica, pela revelação retardada das assombrosas ineficiências do sistema; e a desintegração militar, pelo colapso do Pacto de Varsóvia.
No mundo não socialista, agudizou-se a competição econômica triangular entre os Estados Unidos, a União Européia, e o Japão. Esmaeceu a urgência de solidariedade ocidental sob a proteção da "umbrela" nuclear de Washington.
Para a superpotência americana, coloca-se o problema que Richard N. Haas (Foreign Affairs, jan-feb 1995) chama de "paradigma perdido". A busca de uma diretriz de política externa, tornada mais complexa pelo fim das ideologias, o presidente Clinton propôs um novo mote: "expansão da democracia". Mas se a "contenção do comunismo" é um slogan mobilizador, viculado à sensação de perigo, a "ampliação do espaço democrático" parece uma missão romântica, mais para sermão do que para clarim.
Na realidade, como nota Haas, a política externa norte-americana se acha em situação de fluidez, refletindo, na escolha de objetivos, o entrechoque de diferentes visões: o wilsonianismo, o economismo, o humanitarismo e o minimalismo. A visão wilsoniana é tradicional na política americana, desde os "14 Princípios" apresentados à conferência de Versailles. As democracias seriam preferíveis a qualquer outro sistema na promoção do bem estar e da tolerância. O problema é que o modelo democrático americano não é de fácil exportabilidade, e não pode ser imposto a países com tradições culturais diferentes, como o fundamentalismo islâmico ou o autoritarismo confuciano.
A segunda vertente é o economismo. A construção de organizações internacionais de comércio e finanças (FMI, Gatt, Nafta etc) obedeceu a esse propósito. Mas o jogo econômico não impede guerras e conflitos, e frequentemente a economia tem de ceder lugar às realidades geopolíticas.
A terceira tendência é a do humanitarismo. Dar-se-ia ênfase ao alívio da pobreza, fome e doenças; o perigo mundial seria muito menos a "agressão" do que o "caos social". Trata-se de um enfoque pós-ideológico, que exigiria um alto grau de idealismo, difícil de sustentar quando não há ameaças percebidas aos interesses americanos.
A última das atitudes é a dos minimalistas. Para estes, o pesado custo das intervenções americanas durante quatro décadas de ativismo econômico, diplomático e militar, estaria na raiz do relativo declínio americano. Surgiram superpotências econômicas, como a Alemanha e o Japão, beneficiadas em sua competitividade pela ausência de responsabilidades mundiais. O minimalismo é um resíduo brando do isolacionismo. Mas, como diz Kissinger, os Estados Unidos têm de aprender a viver num mundo que não podem mais dominar, e do qual não podem mais se afastar...
Se nenhuma dessas tendências traz solução adequada quanto aos fins da política externa, existe também, como nota Haas, indecisão no governo Clinton, assim como no Congresso americano, quanto aos meios dessa política. Há os que defendem o unilateralismo, aproveitando-se os Estados Unidos de sua posição singular de única superpotência remanescente, para reclamar liberdade de decisão e implementação. Uma segunda atitude seria a do neointernacionalismo, ou seja, a substituição, tanto quanto possível, da ação unilateral dos Estados Unidos pela de organismos multilaterais, notadamente a ONU. As resistências internas a essa política são óbvias: menor velocidade de decisão, maiores custos de implementação, e relutância do Congresso em conceder a organizações internacionais qualquer forma de veto sobre a política norte-americana.
Uma variante do neointernacionalismo é a "política de alianças específicas", nas quais os Estados Unidos exerceriam posição explícita de liderança. Foi essa, na prática, a posição adotada em episódios recentes, como a Guerra do Golfo Pérsico e a crise financeira do México. Os parceiros internacionais ficariam numa posição ratificadora e ancilar.
Se desapareceu para os Estados Unidos a antiga simplicidade do conflito bipolar, problemas semelhantes se colocam par a União Européia. O medo da União Soviética era, sem dúvida, o fator de coesão fundamental na Otan, mas servia também de importante estímulo à integração econômica e política.
Na Europa, pós-Guerra fria, a integração perdeu um pouco de sua urgência. Surgem diferentes visões, refletidas na controvérsia entre o "aprofundamento" versus "alargamento" da UE. A Inglaterra, com o apoio de diversos países pequenos, preferiria um federalismo frouxo, mais próximo do modelo de "confederação" ou "comunidade de nações". A ênfase seria sobre o livre trânsito de pessoas, mercadorias e serviços, mais do que sobre a unificação da moeda, e a harmonização da política externa e de defesa. O "alargamento" da UE se faria pela admissão de alguns países da Europa Oriental —República Tcheca, Polônia, Hungria e Países Bálticos— não só para ancorá-los firmemente na economia de mercado, como para diminuir um pouco a hegemonia da Alemanha unificada. A França, ao invés, preferiria um "aprofundamento", antes que um "alargamento" imediato da UE, com o objetivo de assegurar o compromissamento definitivo da Alemanha com mecanismos de decisão coletiva. Seria a "europeização" da Alemanha para evitar a "germanização" da Europa. Os franceses não vêem com entusiasmo o acesso imediato dos países do Leste europeu. Eles representariam um encargo financeiro adicional, que diminuiria os recursos disponíveis para os países do Mediterrâneo e a região do Magreb, da qual provém incômodas correntes imigratórias.
Admite-se, hoje, que os diferentes países da UE não possam marchar com a mesma velocidade para a integração monetária e política prevista no Tratado de Maastricht. A UE tenderá a ser um exercício de geometria variável. O primeiro ministro inglês John Major fala na Europa "multispeed". Helmut Kohl, o chanceler alemão, visualiza uma Europa de "círculos concêntricos". Giscard d'Estaing fala na Europe-espace de 15 nações, ligadas pelo livre comércio, e na "Europe pulssanco", realmente supra-nacional e integrada política e monetariamente. O "núcleo duro" inicial se comporia da Alemanha, França e Benelux, disposto a embarcar no plano da moeda única.
É grande o desapontamento dos países ex-comunistas do Leste europeu. Esperavam uma acolhida generosa em seu sonho de "retorno à Europa", e são encarados como países de mão-de-obra barata, competidores em aço e agricultura. Sua interação ao mercado comunitário lhes traria óbvias vantagens econômicas, enquanto que a adesão à Otan diminuiria o medo da Rússia, cujo imperialismo pan-eslavista está narcotizado, porém não sepultado. Entre os obstáculos criados à acessão dos países do Leste europeu, figura a exigência do "acquis communautaire", isto é, a implantação do complexo de leis e regulamentos da União Européia (direito de propriedade, carta social e regulamentação ambiental). A aceitação desses países na Otan sofre um implícito veto russo, pois o Kremlin receia ficar isolado no complexo estratégico europeu.
Que dizer da visão asiática? Orgulhosos do seu dinamismo e veloz crescimento, e pressentindo uma mudança no balanço de poder ao longo do próximo século, os asiáticos deixam transparecer uma visão crítica do Ocidente. Falam na "Europa suicida", viciada no protecionismo, e afligida por guerras na periferia. E aludem depreciativamente à decadência americana caracterizada pela cultura permissiva, pela desintegração familiar, e pelo surto da criminalidade. A "ampliação da democracia" como novo paradigma é pitorescamente descrita em alguns círculos, adeptos do autoritarismo confuciano, como "imperialismo dos direitos humanos".
Talvez a soberbia seja prematura. Com o fim da era Deng Xiaoping, a China pode atravessar novamente um "time of troubles". E, após prolongada recessão, e com uma estrutura política obsoleta, o Japão apresenta sinais de vulnerabilidade.
O mundo está, assim, menos perigoso e mais complexo, o que justifica o título deste artigo.

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