São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 1995
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A CIÊNCIA CONTRA-ATACA

CLÁUDIO CSILLAG
EDITOR-ASSISTENTE DE CIÊNCIA

Não há garantia de que a humanidade ganhará a guerra contra as novas doenças.
A opinião é de Joseph McDade, diretor do departamento de Ciências Laboratoriais dos Centros para o Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, mais conhecidos por CDC, o principal centro mundial de investigação de novos agentes patológicos.
Negando ser pessimista, ele diz que se o homem não fizer nada a população mundial poderá ser dizimada. Mas não extinta, porque se houver poucas pessoas no mundo, raciocina, elas estarão mais dispersas, e os microorganismos terão mais dificuldade para se disseminarem.
Ou seja, se a humanidade não se cuidar, poderá passar por mais um ciclo de grande mortandade, como o da peste negra, na Europa durante a Idade Média, ou o da gripe espanhola, que matou 20 milhões em na segunda década deste século.
McDade acaba de criar a mais recente arma para a humanidade se defender de novas doenças, a publicação "Journal of Emerging Infectious Diseases" ( "Revista de Doenças Infecciosas Emergentes"), lançada semana passada em papel e na rede de computadores Internet. É a primeira publicação especializada em novas infecções do mundo.
A missão da revista, segundo seu fundador-editor, é unir os epidemiologistas do mundo para criar um combate organizado, inexistente até o momento, contra o inimigo, que surge inesperadamente sob várias formas a qualquer hora e em qualquer lugar.

Folha - Como surgiu a idéia de criar uma revista especializada em novas doenças infecciosas?
Joseph McDade - Há cerca de um ano, um colega meu foi abordado por um editor interessado em lançar uma revista dedicada a doenças infecciosas emergentes. Ele não pôde se comprometer com a idéia, e eu acabei investigando um pouco o assunto. O resultado foi que descobri uma demanda e uma resposta muito positivas. Acabei assumindo o tema e organizando um grupo de pessoas para a publicação.
Folha - Pode-se dizer que o lançamento de sua nova revista, assim como a rede de informações sobre bactérias resistentes que a (OMS) Organização Mundial da Saúde iniciou, marcam uma fase nova, em que veículos especializados sobre novas doenças são imprescindíveis.
McDade - Eu diria que temos quatro principais objetivos com nossa publicação.
O primeiro é dar um enfoque consistente a infecções emergentes no mundo.
O segundo objetivo é conseguir o apoio de pessoas no mundo todo interessadas no tópico, através de redes eletrônicas.
A terceira meta é fornecer uma abordagem macroscópica e não apenas uma microscópica. Não queremos lidar com apenas um aspecto de uma infecção emergente, mas com sua complexidade global. Com isso me refiro não só ao que está acontecendo mas também com as razões por trás do que está acontecendo. Por exemplo, temos que entender se um novo surto de doença foi provocado por uma inovação tecnológica, econômica, demográfica ou cultural. Queremos chegar à razão básica.
Finalmente, queremos poder ter capacidade de previsão. Em vez de apenas documentar grandes surtos de doenças, gostaríamos de identificar doenças incipientes antes que elas se tornem grandes problemas de saúde pública. Queremos poder chamar atenção sobre elas e traçar um plano de ação antecipadamente para evitar problema maiores.
Folha - Quais são as principais razões básicas que propiciam o surgimento de novas doenças?
McDade - Foi publicado um relatório do Instituto de Medicina dos Estados Unidos chamado "Infecções Emergentes, Ameaças Microbianas à Saúde nos Estados Unidos". Tratava principalmente dos problemas americanos, mas trabalhava com a idéia de que nos encontramos em uma comunidade global.
O relatório identificou seis fatores primários, que se interrelacionam. O primeiro é a demografia e o comportamento humano. O movimento migratório da cidade para o campo e o tamanho das cidades, muito grandes e complexas, facilita a transmissão de doenças de pessoa para pessoa.
O segundo fator são as mudanças industriais e tecnológicas. No processamento de aves para alimentação, por exemplo, uma única ave infectada pode contaminar inúmeras outras instantaneamente.
O uso da terra e o desenvolvimento econômico são outro fator. Muitas fazendas foram reflorestadas. Como resultado, viados voltaram a essas áreas, e eles trouxeram carrapatos, que propiciaram um ressurgimento da doença de Lyme.
Viagens e comércio internacionais permitem o transporte de bactérias de um canto a outro do mundo. Alimentos colhidos em um país podem estar no prato de alguém em outro país em menos de 24 horas. Um agricultor que esteja com alguma doença diarréica e não tenha aonde ir, pode evacuar no campo, o que poderia contaminar o alimento a ser servido em um outro país.
Adaptação e mudanças microbianas são o quinto fator. Os organismos sofrem mutações muito rapidamente, eles estão desenvolvendo resistência a muitos antibióticos.
Finalmente, o sexto fator é o colapso de medidas de saúde pública. Vigilância e laboratórios inadequados em muitas partes do mundo continuam a exacerbar o problema, porque o monitoramento e avaliação de ameaças não estão otimizados.
Folha - E os microorganismos criados pelo homem, eles são apenas ficção?
McDade - Acho que até agora não passam de ficção. A maioria dos estudos verificaram, retrospectivamente, que boa parte desses vírus (supostamente feitos pelo homem) já existia antes de serem descobertos. Nunca diria que não dá para criar um novo micróbio, mas ninguém fez isso até agora.
É preciso notar que as recombinações genéticas na natureza vêm ocorrendo há milhões de anos, e os "experimentos" da natureza se mostraram muito mais perigosos do que os feitos pelo homem.
Folha - É possível saber quantas novas doenças surgem, em média, por ano?
McDade - No primeiro número de nossa revista temos uma tabela com 22 novos agentes causadores de doenças desde 1973, incluindo o vírus Sabiá, que causa a febre hemorrágica brasileira.
Folha - Quais foram os piores agentes conhecidos?
McDade - Acho que é uma questão de grau, mas o HIV deve certamente estar entre os piores de todos.
Folha - Alguns dizem que os piores não são os que matam mais rápido, mas os mais insidiosos.
McDade - Há várias maneiras de pensar. Concordo com os que dizem que a habilidade de se disseminar com o tempo torna um agente mais perigoso, mas há várias formas de lógica para encarar a questão.
Por exemplo, se o HIV um dia dizimar a população, pode ser que a taxa de transmissão acabe caindo. Por outro lado, o cólera está solto por aí há milhares de anos, e por muitos períodos ele não causou doença. Depende de como se olha a questão, se é sobre o número de casos ou sobre a quantidade de microorganismos existentes.
Folha - O HIV e o cólera, por exemplo, deixaram de ser um problema grave de saúde pública nos Estados Unidos ou na Europa, mas não em países subdesenvolvidos, que têm dificuldade para aplicar medidas de saúde pública. Uma revista como a sua pode realmente ajudar?
McDade - Algumas vezes a prevenção pode ser muito barata. Um estudo na América do Sul, acho que não no Brasil, mostrou que o cólera se disseminava porque pessoas que transportavam água tinham mãos contaminadas e acabavam transmitindo a bactéria para os outros. Uma medida simples foi desenvolver um jarro de água de gargalo comprido, que impediu o contado dessas pessoas com a água, e a transmissão caiu.
Folha - O senhor acha que essas novas doenças estão se tornando mais frequentes?
McDade - A microbiologia é uma ciência nova e também nossa capacidade de detectar agentes. Quando aprendemos a fazer culturas de bactérias, identificamos muitas doenças bacterianas, e o mesmo ocorreu com doenças parasitárias. Foi só com o microscópio eletrônico, na década de 40, que começamos a detectar doenças virais. Mesmo com o surgimento de novas doenças, parte do que descobrimos agora se deve à nossa habilidade de identificá-las. O HIV só foi percebido porque causa um quadro clínico característico. Mas quantas pneumonias não seriam causadas por um agente que nem temos como detectar ainda?
Folha - O vírus Sabiá poderia ser um caso desses, de doença velha?
McDade - Acho que sim, ele obedece a um padrão conhecido de transmissão por roedores.
Folha - Então, se o homem tem convivido com mais microorganismos do que imaginava, provavelmente vai conseguir continuar convivendo com eles.
McDade - Eu não seria tão confiante. Cada geração nossa dura 20 anos, e a dos microorganismos apenas 20 minutos. A capacidade deles de mudarem é muito maior do que a nossa, e eles estão certamente desenvolvendo resistência a antibióticos numa velocidade muito superior à nossa de criação de novos antibióticos. Não há garantia que vamos conseguir nos adaptar a todas as mudanças dos microorganismos.
Nossa vantagem é conhecer as maneiras de desinfecção, de imunização e de prevenção. Mas isso vai exigir todos nossos recursos.
Folha - Então, num cenário pessimista, o senhor...
McDade - Isso não é pessimismo, é realismo. Nós podemos vencer, mas não se ficarmos sentados esperando que as coisas aconteçam sozinhas. O homem tem sobrevivido, embora a população tenha sido muito reduzida em vários períodos.
Agora, para sobrevivermos, vamos precisar muito engenhosidade. Não acho que a longo prazo não vamos sobreviver, porque se o tamanho da população for muito reduzido, o número de doenças transmissíveis também cairá, pois estaremos mais dispersos e as transmissões serão mais difíceis.
Folha - Essas mudanças poderão trazer implicações sociais, como dificuldade em viajar?
McDade - Não posso prever, mas há casos em que quarentenas são recomendáveis, como quando uma pessoa vem de um país onde tenha havido um surto de doença infecciosa.
Folha — O senhor acha que as quarentenas podem se tornar comuns?
McDade - Acho que elas vão ocorrer periodicamente.

INTERNET - para acessar a revista eletrônica pela Internet, peça informações pelo endereço eletrônico EIDHELP CIDOD1.EM.CDC.GOV

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