São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 1995
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Terminou a era da tranquilidade do antibiótico

PAULO FERNANDO SILVESTRE JR.
DA REPORTAGEM LOCAL

Antes de reclamar de sua má sorte pelo surgimento em todo mundo de novas doenças, o homem deveria olhar mais para seus hábitos. Muitos pesquisadores afirmam que a maior responsável pelo aparecimento destes males é a própria sociedade moderna.
Pela lógica da reciprocidade, a única forma de vencer essa verdadeira guerra biológica passaria também pela participação efetiva de todos os segmentos sociais.
Novas gerações de drogas são obviamente de fundamental importância para o combate aos microorganismos de plantão, mas é consenso entre a comunidade científica que isso não impedirá o alastramento das pragas.
"A organização social é responsável efetivamente pela volta de doenças e o aparecimento de outras", explica Luiz Carlos Meneguetti, diretor-geral do Instituto Adolfo Lutz, um dos maiores centros de pesquisa na área do país.
"As reações da comunidade científica não são suficientes, deve existir uma da sociedade", diz.
Um exemplo seria o caso da Aids, onde, paralelamente à procura de um medicamento contra o vírus, existem campanhas sociais de prevenção contra a doença.
Mais do que a criação de novos organismos patogênicos, a intervenção do homem na natureza pode revelar agentes que estavam "escondidos".
"A gente não sabe se os vírus emergentes já existiam no passado ou se fazem parte do processo evolutivo", segundo Jorge Travassos da Rosa, diretor do Instituto Evandro Chagas, de Belém (PA).
Ele explica que o homem faz parte da cadeia epidemiológica. Dessa forma, agredindo a natureza, ele pode causar um desequilíbrio ecológico, desbalanceando-a.
"A tendência é que os diversos fatores que interagem para manter esse equilíbrio fiquem desnorteados. O malefício que ele causa se volta contra ele", diz.
Aspectos tecnológicos, econômicos, demográficos e culturais podem desequilibrar a cadeia.
Questões sociais, como saneamento, também fazem a festa dos microorganismos oportunistas.
É o caso, por exemplo, dos surtos de difteria e cólera que aconteceram em 1993 na Rússia, evitáveis com higiene e uma rede de saneamento adequada.
Não se pode esquecer também do colapso sofrido pelo sistema de saúde público, que facilita a proliferação de doenças relativamente simples de prevenir e de tratar.
Isso explica por que algumas doenças que aterrorizam países do Terceiro Mundo praticamente inexistem nos de Primeiro Mundo, que têm uma rede de saúde mais ampla e de melhor qualidade.

Dose cavalar
Sem dúvida nenhuma, um dos grandes responsáveis pelo fortalecimento e consequente "volta" de microorganismos que estavam praticamente erradicados é o uso indiscriminado de medicamentos.
Quando os antibióticos começaram a surgir, na década de 40, a sociedade exultou com a possibilidade de ver seus problemas com doenças infecciosas resolvidos.
Isso levou ao uso indiscriminado de antibióticos, muitas vezes quando nem eram necessários, que a longo prazo produziu linhagens resistentes de microorganismos.
A tuberculose, por exemplo, ressurgiu com força em áreas onde ela parecia praticamente erradicada, como em 1993, nos EUA.
Além disso, essa falsa sensação de "segurança" fez com que as autoridades se descuidassem de medidas sanitárias que antes tomavam contra as infecções.
Para Meneguetti, a grande disponibilidade de medicamentos no mercado e a facilidade de acesso a eles pela população —que cada vez mais se automedica— tem grande parcela de culpa na criação destas linhagens resistentes.
Além disso, a cura de doenças teria se transferido excessivamente aos remédios. "Antigamente, minha mãe me dava um chazinho e me mandava brincar", diz.
A cura, nesse caso, ficava por conta do sistema imunológico, que era capaz de dar conta dos invasores de então, mais "fraquinhos" que os de hoje.
A melhor arma hoje para controlar o avanço das doenças é a informação. Um dos maiores símbolos disso, além da revista dos CDC (leia texto na página anterior), é a rede criada pela Organização Mundial da Saúde, que visa uma integração de pesquisadores em novas doenças no mundo.
Com essa troca de informações, espera-se produzir mais rapidamente novas drogas e tratamento, pois os microorganismos estão ganhando essa "corrida" com sua velocidade de adaptação.
A era da "tranquilidade do antibiótico" parece ter acabado. Se a humanidade não tomar suas precauções, terá sempre algum peso na consciência quando saborear uma refeição, fazer amor ou até mesmo passear por um bosque.

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