São Paulo, quarta-feira, 22 de fevereiro de 1995
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Horror nazista arquitetou idílio kitsch

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

No auge da guerra, Hitler determinou que Atenas fosse poupada dos bombardeios. Aquele monstro admirava a cultura grega. Depois da tomada de Paris, Hitler e sua comitiva fizeram uma visita secreta à cidade mais bonita do mundo. O passeio foi filmado e mostra Hitler, grande conhecedor de arquitetura, nos salões do teatro da Ópera, ciceroneando seus asseclas.
Pintor frustrado, Hitler fazia aquarelas bonitas. Escolhia a dedo os maiores tesouros artísticos dos países invadidos para compor o acervo de um grande museu em sua cidade natal.
Informações desse tipo aparecem em "Arquitetura da Destruição", documentário já há algumas semanas em cartaz no Cinesesc. É o filme mais fascinante dos últimos tempos. Daria para ficar discutindo horas sobre tudo o que é mostrado ali.
Mais do que um documentário, é um verdadeiro ensaio histórico. A idéia básica do filme, repleto do cenas surpreendentes e documentações riquíssimas, é a de que o nazismo pretendia embelezar o mundo.
Esse era o sonho. O pesadelo, sabemos qual foi. Pronunciada fora do contexto, a frase "o nazismo pretendia embelezar o mundo" parece propaganda dos seguidores de Hitler. O filme não entra, claro, nessa armadilha. Mostra o horror dos campos de concentração, é verdade que de forma indireta, mas por isso mesmo mais horrível.
Não é, evidentemente, um filme neonazista. Mas levanta problemas tremendos. O mais evidente, e que já é quase um clichê nos filmes de guerra, está no seguinte fato: carrascos de campo de concentração gostavam de Bach e Beethoven. Um monstro genocida é capaz de enternecer-se ao ver quadros de Botticelli ou Rafael.
Como explicar uma coisa dessas? George Stainer, no seu livro "O Castelo de Barba Azul" (ed. Companhia das Letras), faz algumas considerações a respeito; mas são inconclusivas.
Há algo de errado na beleza e na cultura clássica, se os nazistas gostam tanto dela? Essa pergunta passa por todo o filme —e é difícil dar uma resposta.
As cenas iniciais de "Arquitetura da Destruição" mostram uma aldeia alemã ao amanhecer. A paisagem é linda. Absolutamente maravilhosa, em suas cores e brumas de outono, em sua utopia de ordem, de limpeza, de silêncio; vemos também a graça casual de uma ocupação humana em harmonia com a terra, casas dispostas ao sabor do acaso, mas apesar do acaso repletas de sentido; o Ser heideggeriano, parente do Morar, do Estar em Casa, abre-se para nós, entre as suaves neblinas da fotografia.
Os nazistas, diz o narrador, queriam embelezar o mundo... E o público se encontra na incômoda posição de admitir: sim, o mundo é feio. E o que eu acho bonito os nazistas também achavam.
"Arquitetura da Destruição" põe o espectador numa enrascada. Mostra de que modo esse ideal de beleza se transformou em ideal de eugenia, em assassinato de pessoas defeituosas, em ódio aos judeus, em genocídio.
Arquitetos e médicos, movidos por um ideal de saúde e beleza, terminam construindo campos de extermínio eficientíssimos, sem derramamento de sangue. Documentários nazistas, reproduzidos no filme, ensinam regras de higiene e processos de dedetização no lar. Monstruosamente, produtos para eliminar insetos foram usados para matar seres humanos.
O nazismo se torna, a partir das informações do filme, ao mesmo tempo mais horroroso e mais próximo. Havia uma "utopia" de ordem e de beleza em toda a coisa. Isso o torna mais compreensível do que se fosse mera explosão maníaca de ódio e ressentimento. Mas isso o torna mais demente, mais patológico do que nunca.
É como se, num ambiente psicopático, criminoso, cínico e burocratizado como o nazista, a admiração pela beleza e pela ordem trocasse de valor, invertesse o seu sentido. O gosto pela saúde e pela ginástica, típico do nazismo, era na verdade a doença de que os nazistas padeciam. Organizando-se o horror em regra cotidiana, a beleza (desfiles, corpos, colunatas) surgia como transgressão, como bravata vanguardista.
"Arquitetura da Destruição" levanta mais problemas e comentários do que os cabíveis neste artigo. Tento dar conta de um único tema: o ódio dos nazistas pela arte moderna.
Aparecem, no filme, cenas da exposição que os nazistas organizaram sobre "arte degenerada": Kokoschka, Emil Nolde, Grosz, os expressionistas em geral, foram denunciados como vilões a serviço do "feio", enquanto as mostras de arte oficiais do regime exibiam quadros de saudáveis camponeses, paisagens grandiosas, efebos de mármore.
A verdade é que os quadros nazistas eram mais bonitos do que os quadros "degenerados". Procuro entender a questão em jogo.
Os conceitos de "bonito" e de "feio" raramente suscitam polêmica. Ninguém duvida que Luma de Oliveira é mais bonita que o Costinha. Eis um ponto em que nazistas, social-democratas e liberais podem chegar a um acordo.
O problema, na guerra dos nazistas contra a arte moderna, localiza-se em outro ponto. Não se trata de distinguir entre o que é feio e o que é bonito, mas entre o que é arte e o que não é arte.
Evidentemente, os pintores "degenerados", os expressionistas e modernistas em geral, sabiam que estavam fazendo quadros "feios". A feiúra, as "não-mais-belas artes" de que fala Hegel, passaram a fazer parte do repertório estético moderno.
Trata-se, em grande parte das realizações estéticas deste século, de fazer uma arte mais "verdadeira" do que "bonita". Mais de denúncia do que de evasão. A arte não como refúgio das musas, como reserva ecológica da ordem, e sim como grito de angústia, nervo exposto do real.
Muito bem. Mas aquilo que horrorizava os artistas de vanguarda na década de 20 era precisamente... o que horrorizava os nazistas. Caos urbano, decadência da burguesia, insalubridade, demência: basta ler qualquer livro de Le Corbusier, papa do modernismo arquitetônico, para ver que ele teria muito a concordar com Hitler.
Desconfio que, na origem, muitos concordavam. Nazismo, bolchevismo e modernismo surgem a partir de um diagnóstico semelhante, o da exaustão da cultura burguesa, e de um receituário parecido do ponto de vista teórico: destruir para purificar.
Claro que as semelhanças terminam aí: na crença em um apocalipse que, afinal, não ocorreu. Que os nazistas tenham sido contra o expressionismo, que seus ideais de "limpeza" tenham a ver com o funcionalismo arquitetônico, nada prova muita coisa.
A cultura contemporânea parece sobretudo às voltas com esse apocalipse que não houve —e o pós-modernismo talvez seja uma primeira reação (nazistóide, aliás, em termos de estilo arquitetônico) ao atual estado de coisas.
O que fazer? O retorno a padrões de beleza e classicismo é, como nos tempos de Hitler, uma aposta certeira no kitsch, no falso, no ideológico. A arte de denúncia sobrevive em Francis Bacon, em Julien Freud. A esperança numa denúncia, entretanto, soçobrou. O messianismo das vanguardas soa ultrapassado; em matéria de messianismos, Hitler e Lênin já deram o que tinham que dar.
É neste estado de coisas que surge o documentário "Arquitetura da Destruição". A beleza é mortal.

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