São Paulo, sábado, 25 de fevereiro de 1995
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Cure-se o México e mate-se Cuba de fome

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Cai bem, num artigo de jornal, citar autores clássicos de vez em quando. Plutarco, por exemplo, que nos conta, no perfil que faz de Aristides, que os atenienses lhe haviam dado o apelido de "o justo". Mesmo assim, via-se Aristides um dia ameaçado de ostracismo. O julgamento era da cidadania em geral, que, numa "cédula" de argila, inscrevia o nome de cidadãos acusados de ferir alguma lei ou costume da cidade.
Devia ele ou não seguir para um ostracismo de dez anos? Pois estava Aristides no meio do povo que ia votando quando é abordado por um cidadão analfabeto que lhe pede que inscreva em seu tablete de barro exatamente o nome de Aristides. "Por que? Que mal fez ele a você ou a Atenas?", quer saber Aristides. O popular (segundo Plutarco um tipo meio debochado, desligadão) dá de ombros: "Sei lá. Eu nem conheço o cara. Mas estou de saco cheio de tanto ouvir ele ser chamado de 'justo' ".
Lembrei da história quando vi que Fidel Castro, que chegou ao poder em Cuba em 1959, estava de novo, dias atrás, ocupando a capa da revista "Time". Por isso é que ele enche no mundo milhões de sacos.
Não adianta acentuar que ele foi —perdão, é— o único ditador que deu saúde, educação, dignidade a um povo inteiro neste continente latino-americano devastado pela miséria. É preciso decretar o ostracismo dele, bradam os americanos em Washington. Ostracismo nunca, paredón!, respondem em eco os gusanos cubanos que vivem à tripa forra em Miami.
Pessoalmente, se a questão Fidel dependesse de uma votação internacional, eu não poria o nome dele em minha cédula de barro nem que me levassem preso de novo para a Polícia do Exército na rua Barão de Mesquita, Tijuca, Rio. Além de respeitar no Comandante um tirano esclarecido de edição muito especial, me irrita demais a posição dos Estados Unidos em relação aos povos pequenos e valentes que têm a audácia suprema de derrotá-los.
Só agora, e muito a contragosto, os EUA retomam relações com o Vietnã, para não perderem oportunidades cada vez melhores de comércio com o adversário-mirim, mas rijo demais, e digno. Em relação a Cuba, ainda insistem no ostracismo de Fidel, sem condições. Que apareçam aqui e ali Fujimoris, tudo bem. Mas esse inacabável Aristides dedicado a encher augustos sacos presidenciais americanos desde Kennedy —esse não.
Bons estrategistas, calculistas de escol quando organizavam o domínio mundial (que por isso mesmo já começaram a exercer), os Estados Unidos perdoam no dia seguinte os inimigos poderosos. Ainda havia no ar caliça de Berlim e Dresden destruídas e os dólares do Plano Marshall já voavam para o Reich.
Gorbachev ainda sentia dúvidas quanto ao fim do comunismo e Washington já enviava a Moscou engravatados regimentos de rapazes do FMI, tal como enviava empresários do Norte ianque às fazendas do Sul devastado em "...E o Vento Levou", filme que revi há dias na televisão e que fornece um bom modelo do estilo americano de ação no mundo inteiro.
Os povos que ainda não se curvaram são apenas a parte Sul, ainda meio teimosa, de um mundo que na realidade é um só, com uma bandeira só, sempre a mesma, exceto que aumenta de tempos em tempos o número de suas estrelas.
Uma estrela óbvia a incluir nessa "star- spangled banner" seria o México, não só porque nasceu tão colado aos Estados Unidos que já teve vários nacos do território abocanhados pelo vizinho do Norte, como porque, graças aos esforços do presidente Clinton, entrou para o clube grã-fino do Nafta. O altivo povo mexicano (que em 1910 tentou fazer a primeira revolução socialista, dez anos antes da Rússia) não foi consultado. Resolveu por ele o partido ditatorial que o governa há décadas, o PRI.
Chego aqui ao que eu realmente gostaria de sugerir neste artigo: estamos precisando, para este mundo que os EUA vão transformando num só, de uma nova moral, uma moral contábil. A pergunta básica seria: quando e com quanto devemos socorrer irmãos aflitos como o México, que casou com o Nafta sem ter o dote que dizia ter? A idéia, ou a pergunta, me veio quando li aqui na Folha (9 de fevereiro de 95) o artigo "México e Cuba", de José Arthur Giannotti.
Giannotti —amigo que não vejo desde os tempos em que trabalhamos juntos na Columbia University, mas que me é muito caro— começa o artigo dizendo: "Não vejo como os Estados Unidos venham pedir a solidariedade das Américas para o caso mexicano, sem que suspendam o indecente bloqueio que infligem a Cuba" e acaba achando um disparate que socorramos as finanças mexicanas "sem fazer ver a Bill Clinton a irracionalidade e a perversidade de sua política anticubana. Nossa solidariedade é com todas as Américas, de sorte que um país não pode ser socorrido enquanto o outro continua sendo sufocado".
Manda a mais comezinha honestidade que eu registre que Giannotti (ninguém é perfeito) tem uma visão dura do Comandante: "Não há dúvida de que Fidel hoje é uma triste figura, passeando seu caudilhismo aprumado num uniforme de campanha".
Mas não pode ser mais conciso e intenso o pedido que faz Giannotti de uma nova e clara moral para este mundo cada vez mais soldado à grande potência mundial que é caridosa, em primeiro lugar, com seus próprios capitalistas, em segundo lugar com os países que derrotou, mas que são fortes demais para continuarem ressentidos, e que é simplesmente implacável com os pigmeus que ousaram derrubá-la no ringue.
E, já que comecei com um clássico grego, acho que dou um certo equilíbrio ao artigo encerrando com o grande clássico espanhol. Ao dizer que Fidel é hoje "uma triste figura" meu amigo Giannotti não estaria sem querer pensando naquele outro Cavaleiro da Triste Figura, aquele Quixote que sofria também da mania de sonhar muito além das suas forças?

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