São Paulo, sábado, 25 de fevereiro de 1995
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Gestão FHC desperta nhenhenhém adesista

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Reduzir uma sociedade de 100 milhões de pessoas a um mercado de 25 milhões exige um processo cultural muito intenso e sofisticado. É preciso embrutecer esta sociedade de uma forma que só se consegue com o refinamento dos meios de comunicação, dos meios de publicidade, com um certo paisagismo urbano que disfarça a favela, que esconde as coisas" (Oduvaldo Vianna Filho, 1974)

É muito fácil e provoca mesmo um certo prazer nos jornalistas que se ocupam da política cultivar o bom hábito da crítica quando o alvo é o regime autoritário, a máfia collorida, o provincianismo de Itamar ou o fisiologismo de Sarney.
As coisas não são tão simples quando o objeto em questão é Fernando Henrique Cardoso. Não só porque se trata de uma pessoa incomparavelmente mais preparada que seus antecessores. Isso é óbvio. Mas sobretudo porque a maioria de nós tem em relação a ele, e ao que ele politicamente representa, uma cumplicidade tácita construída ao longo de anos, uma identidade difusa e dispersa no tempo, que tende a enfraquecer a disposição crítica e desarmar qualquer atitude mais reticente.
Muitos de nós tomamos contato com a política ouvindo o que diziam FHC e alguns de seus principais colaboradores. Alguns de nós fomos seus alunos, frequentamos os mesmos ambientes, as mesmas reuniões, os mesmos eventos culturais, os mesmos bares da Villaboim. Há um inegável ar de família entre a grande imprensa, a classe média urbana "soi disant" intelectualizada e o grupo de acadêmicos que chegou ao poder.
Para citar um caso exemplar dessa promiscuidade, basta lembrar a reunião oferecida pelo editor Luís Schwarcz ao escritor Mario Vargas Llosa, no final do ano passado. Estavam ali lado a lado o presidente eleito, a cúpula do tucanato, editores de jornais, colunistas sociais, personagens desses colunistas, a nata da intelectualidade uspiana, artistas que ocupam as páginas da Ilustrada, escritores, modelos e outros apaniguados.
À primeira vista, tudo isso parece muito inofensivo. Se todo governo, por pior que seja, tem atrás de si uma corte de áulicos e bajuladores, por que não dar uma chance logo a este? Afinal, dificilmente poderia haver outro mais apto em matéria de inteligência, bons modos e urbanidade.
Este é o raciocínio que parece orientar os propagandistas dos anos FHC. Ao contrário dos seus antecessores, pouco afeitos a sutilezas e refratários ao debate, os novos entusiastas da cultura chapa-branca se apresentam como defensores da "racionalidade".
São os mensageiros da governabilidade, os arautos da reengenharia do Estado, os camelôs das reformas estruturais, que nos são vendidas insistentemente como a última porta que conduz do atraso à tão esperada modernidade.
No mais das vezes, eles atuam pela desqualificação intelectual de todos os que ainda ousam torcer o nariz diante da evidência de que o governo está fazendo o "óbvio necessário". Os críticos eventuais são rebaixados à condição de porta-vozes do nhenhenhém, exemplares da "burrice nacional", .
Essa última expressão, não por acaso consta do artigo publicado na última terça-feira, na Ilustrada, pelo cineasta e colunista da Folha Arnaldo Jabor. Tem sido ele um dos expoentes dessa nova febre de "adesão inteligente" ao governo FHC. Jabor conquistou seu espaço por méritos inegáveis. Tem o direito de dizer o que bem pensa. Talvez por isso mesmo tenha aposentado o senso crítico.
Tome-se seu último artigo, "Monstro do Nhenhenhém ataca outra vez". Nele, o FHC psicografado por Jabor surge como a encarnação da "evolução de um pensamento reformista", aquele que quer "fazer o óbvio necessário, ação em vez de palavras".
O monstro do nhenhenhém, por oposição, representa um discurso "que está aí há 500 anos". Diz a criação jaboriana: "Depois da tua eleição, depois do período Collor, depois de tanto sofrimento, eu achei que a cabeça do país tinha mudado, achei que iam dar um crédito de confiança ao novo, que haveria um desejo real de mudanças. Eu cheguei a fazer as malas para ir embora, mas logo me convocaram de volta. Aí eu vi que as esquerdas e direitas não tinham mudado nada. E me animei, e estou feliz de velar pelo eterno pântano nacional (...) Eu sou a voz da burrice nacional".
Como se vê, são palavras. Revelam mais o talento do autor para a ficção do que qualquer capacidade analítica efetiva. Bem pesadas, as engenhosas fabulações do colunista se resumem a uma única fórmula: "I know, it's only FHC, but I like him."
A questão que se esconde por trás dessa oposição sumária entre o certo e o errado, o racional e o irracional, o moderno e o arcaico, o inteligente e o burro, estes sim autênticos nhenhenhéns, é uma só: a troco de que avalizar dessa forma um governo que mal começou? Em nome de que, afinal, depositar essa confiança cega na atual gestão? Será em função do estrondoso sucesso da economia mexicana, na qual andamos nos inspirando? Ou então em função da generosa anistia concedida a Humberto Lucena? Ou, quem sabe, em nome do sincero ímpeto mudancista encarnado nas figuras dos presidentes do Congresso, José Sarney, e da Câmara, Luís Eduardo Magalhães? Quem sabe não seja pela enorme distância que separa as propostas liberalizantes de Collor e a "reforma administrativa" (mudou de nome) de FHC?
Na ausência de respostas, ficamos sem saber a que veio a pena hábil do colunista. Tudo parece resumir-se na aposta de que FHC, por seu currículo, já teria a chave para os problemas do país. Quem quiser que conte outra. Isso é fetiche, ilusão de intelectual transformado em aprendiz de tecnocrata.
Fica a impressão de que os tucanos e seus agregados querem fazer crer que estamos vivendo uma espécie de versão jornalística da síndrome de Fukuyama. Acabaram-se os escândalos, encerraram-se os desmandos, os velhos interesses foram dissolvidos pela "ratio" administrativa. Numa palavra, não há mais notícias, decretemos o "fim do jornalismo".
Ninguém desconhece que, se quiserem acompanhar os passos do novo governo, os jornalistas terão mesmo que afinar seus instrumentos. Mas terão sobretudo que resistir à tentação adesista, sob o risco de chegarem ao final desta história como meros coadjuvantes daquele esforço de refinamento dos meios de comunicação que, feitas as contas, só terá servido para esconder um país de miseráveis atrás de um ridículo mercado de consumidores felizes.

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