São Paulo, sábado, 25 de fevereiro de 1995
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Bidu Sayão

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO — Se fosse responsável pela Beija-Flor, talvez não tivesse aprovado a idéia de homenagear Bidu Sayão, dedicando-lhe enredo e samba. Desconfio dessas misturas entre o erudito e o popular. Tudo que é popular pode se tornar erudito, mas nem sempre o erudito pode ser popular.
O Brasil (e não a Beija-Flor) estava devendo uma festa a Bidu Sayão. E nada melhor do que um desfile de Carnaval, com direito a alegorias e lembranças de sua glória. Em minha infância, o nome dela tinha o peso de um Romário, uma mistura de Xuxa e Gal Costa.
A primeira ópera que assisti foi "La Gioconda", meu pai tinha uma gravação de "A Dança das Horas", pedi que me levasse. Do espetáculo guardei apenas o palácio dos Doges refletido no Canal Grande e o fato de a heroína, apesar de ter morrido em cena, vir agradecer os aplausos no final.
A segunda vez, sim, foi a epifania, o encontro que me marcaria. Ressabiado com a ópera anterior, fiquei pelos cantos lá de casa, mas o pai insistiu, eu não podia perder "La Bohème", Bidu Sayão no papel de Mimi.
Era impossível compreender tudo. Mas a música de Puccini e a suavidade de Bidu me amarraram para sempre. No ato final, fiquei constrangido quando, pela primeira vez, vi meu pai chorar. Reparei depois que outros homens também choravam, curiosamente, eram os homens, homens feros e barbudos que choravam a morte de Mimi. E todos gritavam: Bidu! Bidu! Eu sentia vergonha.
Anos depois, num dos corredores nobres do Metropolitan Opera House, esbarrei num quadro dessa mesma Mimi, o mesmo traje, a mesma touca, o mesmo sorriso triste e, de tão triste, tão suave. Não precisei ler a placa que admiradores do mundo inteiro ali colocaram para eternizar uma das temporadas de Bidu Sayão no Met.
Oficialmente, seu grande papel na cena lírica teria sido a Manon, não a de Puccini, mas a de Massenet. Apesar disso, o grosso da plebe, seja a internacional ou a nativa, foi nela que encontrou a melhor encarnação da "suave fanciulla" pucciniana. Daquela que, a cada despedida, pede um "addio senza rancor" —o adeus sem rancor dos que nunca deixarão de amar.

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