São Paulo, terça-feira, 7 de março de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O crime na política

JANIO DE FREITAS

Você se senta para ver as notícias do dia. Sábado à noite. Dia de lazer, noite de amenidades. Resultados esportivos, o desfile das campeãs que começa, mulheres pitanguis com adereços cafonas, a inevitável bajulação no presidente e, não menos infalível, alguma bandidagem urbana já vulgar. E, no entanto, você se torna espectador de uma execução fria, covarde, bárbara. Você, sua mulher, seus filhos sabiam que isso é coisa de todos os dias brasileiros —mas nunca tinham visto. E assim, não à beira dos esgotos de uma favela: assim, nas portas de um shopping center.
O governador Marcello Alencar deu sua explicação imediata: "houve um excesso de violência" do PM. Como observa minha colega Fernanda Godoy: "até então, excesso de violência era um tapa, um pontapé, o uso desnecessário de um cassetete. Agora, o assassinato de um homem indefeso, já vencido no chão, também é apenas um excesso de violência".
Embora de índole muito violenta, Marcello Alencar não considera, por certo, que houve apenas "um excesso". De onde lhe veio, então, esta explicação absurda, que está se desdobrando em considerações cada vez mais desatinadas?
Há pouco menos de um ano, Alencar assumiu a iniciativa de um movimento que pretendeu a decretação, por Itamar Franco, do Estado de Defesa no Rio. Para se ter idéia do extremo da pretensão, a medida permitiria a proibição de reuniões e a quebra dos sigilos de correspondência e de telefones. Isto, a pretexto de reprimir os traficantes das favelas e a degradação policial, causadora do alto índice de criminalidade. O responsável apontado era o governador, que naquele momento mesmo deixava de ser Leonel Brizola e passava a ser o tão conceituado criminalista Nilo Batista.
Marcello Alencar tornou-se governador. Quando candidato, tinha todas as receitas para acabar com a criminalidade no Rio. Empossado, preferiu não se submeter ao teste: entregou todo o dispositivo policial a militares do Exército. Faz apenas as figurações, de que não poderia abrir mão. A atualidade é conhecida: recorde de sequestros, multiplicações dos assaltos a bancos, progressão dos roubos de carros, ação continuada das quadrilhas de traficantes e a mesma insuficiência policial. Esta, agora, agravada pela cobertura que os "excessos de violência" têm de imediato.
Como candidato, Marcello Alencar lançou o movimento pelo Estado de Defesa e explorou a criminalidade, como tema principal de campanha, em gesto de fins apenas políticos. Como governador, transferiu para militares o problema da criminalidade com o fim apenas político de não sofrer desgastes. O mesmo se pode dizer das ONGs e movimentos que acompanharam Marcello na campanha pela intervenção e, tão maior a violência atual, desapareceram como se também executados. Foram, pelo menos naquela fase, nada mais do que entidades de fins políticos, explorando a criminalidade para favorecer a mudança dos detentores do governo estadual.
A experiência de então ficou e se estendeu aos meios de comunicação. Neles, agora, descobre-se a criminalidade paulista, como se surgida de repente. E, sempre que seja possível fazê-lo, releva-se a do Rio, liberada das manchetes e da grandiloquência do jornal das oito. É natural, assim, que você veja uma execução a frio, covarde, bárbara —e, no entanto, por mais chocado que fique, não tenha visto mais do que um "excesso de violência". Tratado como tal pelos meios de comunicação. A criminalidade, como você sabe, é menos importante do que o interesse político.

Texto Anterior: Arqueólogos atualizam dados de atlas histórico
Próximo Texto: Governo vai reestruturar seu órgão de informações
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.