São Paulo, domingo, 12 de março de 1995
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O inventário da crise cambial

LUÍS NASSIF

Com a exatidão com que os diplomatas utilizam as declarações, o ministro da Fazenda Pedro Malan definiu de maneira correta as trapalhadas dos homens do Banco Central com a política cambial: "Não cometeram nenhum erro imperdoável".
O perdão veio na sexta, quando o BC conseguiu abortar a corrida contra o real, deflagrada na segunda-feira, recomprando por um preço menor os dólares que fora obrigado a vender nos dias anteriores.
Será um pouco mais difícil recompor os danos causados à imagem do Plano Real. Mas não impossível, dado o alcance da vitória de sexta.
O mercado de câmbio e de taxas é de alta combustão. As possibilidades de ganhos (e de perdas) são infinitas. Uma instituição média, com capital de US$ 40 milhões, tem capacidade de alavancar até US$ 300 milhões em apostas nos diversos mercados (à vista, futuro, de opções, através de mecanismos como cartas de fiança bancária). E —para esse capital de US$ 40 milhões— pode ganhar (ou perder) cerca de US$ 6 milhões a cada 1% de variação na taxa do câmbio. Ou seja, basta ficar na contramão em 3% para consumir metade do seu capital.
As mudanças
Por aí se vê o valor das informações e os riscos inerentes a esses mercados. Com as mudanças do câmbio produzidas pelo Plano Real, os 15% de queda quase instantânea do dólar produziram riquezas fantásticas. No ano passado, um banco recém-constituído teve um lucro contábil de US$ 50 milhões —e um lucro real presumido de US$ 120 milhões. Dois anos antes, o banco tinha um capital líquido de pouco mais de US$ 2 milhões.
Na outra ponta, muitas instituições que não dispuseram desse mesmo extraordinário "feeling" erraram na aposta e quebraram.
Desde dezembro estava claro que a política cambial teria que mudar. Os estudos começaram efetivamente no último fim-de-semana, provavelmente numa reunião iniciada em São Paulo, para onde vieram o diretor da área internacional do BC, Gustavo Franco, e o chefe da mesa de câmbio, Joubert Furtado. Já os aguardava Pérsio Arida, que passara o Carnaval na fazenda da família Bracher, perto de Ribeirão Preto.
Falta de consenso
Não havia consenso entre Franco e Arida sobre as regras de passagem para o novo modelo. Franco advogava a criação de duas bandas (faixas de variação do dólar), uma a vigorar até 2 de maio, outra dali por diante. Arida defendia a liberdade de o BC mudar a banda na hora em que bem entendesse.
Foi o primeiro problema. O segundo era a falta de familiaridade da equipe com as peculiaridades do mercado, em que pese sua boa visão macroeconômica. Nos últimos oito meses, pelo menos quatro circulares sobre câmbio haviam sido canceladas devido à falta de clareza, antes que produzissem confusão.
A circular mudando o câmbio, assinada por Franco, foi divulgada na manhã de segunda. A demora na divulgação já indicava serviço incompleto. O mercado abriu e a mesa pediu dez minutos para soltar o comunicado. Depois, mais 20, mais 30. O comunicado saiu uma hora e meia depois da abertura do pregão, após quatro adiamentos.
Quase junto com a circular, o BC chamou os "dealers" (instituições através dos quais o BC negocia com o mercado) para uma reunião às 11h em Brasília. O sistema de "dealers" é uma excrescência brasileira antiga e anacrônica, que permite a meia dúzia de privilegiados saberem antes dos demais os rumos que o BC pretende imprimir ao mercado.
Durante a reunião, as divergências entre Arida e Franco ficaram patentes. O mercado ferveu às 11h30, antes mesmo que a reunião terminasse. Provavelmente graças ao milagre do telefone celular e ao álibi de algum "dealer" que pediu para ir ao banheiro no meio da reunião. Tudo devido ao item da circular que falava sobre os prazos de vigência da banda cambial. Parte do mercado entendeu —como queria Arida— que as bandas poderiam ser alteradas a qualquer momento. Parte entendeu —como Franco— que não.
Disparidades
Com as explicações dadas pelo BC à imprensa no começo da tarde —sustentando que o sistema de bandas não seria alterado intempestivamente—, o mercado reabriu calmo às 15h.
Às 15h45 ferveu de novo, quando um "dealer" ligou para a mesa do BC e indagou se, afinal, o banco poderia ou não alterar a banda na hora em que quisesse. Do outro lado da linha, o operador respondeu que sim. A seu lado, um outro operador julgou que a informação poderia ser um "insider" —isto é, informação exclusiva para uma corretora. E tratou de disparar ligações, avisando os demais "dealers".
Instalou-se a confusão, estimulada pela falta de consenso entre Arida e Franco. Durante dois dias seguidos, numa ponta, Franco dizia que a banda era para valer. Na outra, Arida sustentava que não. Esses descompassos fizeram com que o mercado explodisse nos dias seguintes.
Escaldados pelos prejuízos sofridos em julho passado, as instituições que não dispunham de fontes junto ao BC começaram a carregar dólares, com medo de serem apanhadas novamente no contrapé.
Foi o que bastou para instituir o caos. O mercado passou a bater seguidamente no teto da banda. A reação do BC não foi convincente. Limitou-se a intervenções tímidas, que não desestimularam o atrevimento dos especuladores.
Racionalidade reposta
A racionalidade foi reposta na noite de quinta-feira, quando a dupla Arida-Franco resolveu suas divergências, teve a humildade de buscar conselhos em outros setores, ouviu os companheiros de diretoria do BC e definiu um pacote irrepreensível.
O BC recorreu a todo o arsenal de instrumentos anticrise desenvolvido ao longo da década de 80. Restringiu saída de dólares, estimulou a entrada, reduziu a margem de alavancagem dos bancos e aumentou as taxas de juros.
E foi um arraso. Na sexta mesmo, os especuladores começaram a devolver com prejuízo os dólares acumulados. Para sua sorte, o BC elevou o piso da banda. Caso contrário, haveria não só prejuízos mas uma quebradeira generalizada.
A semana terminou com a transição completada, e com o país menos vulnerável à crise internacional. Acabou-se o câmbio completamente livre, rompeu-se com a resistência em instituir medidas administrativas contra os investimentos especulativos.
O fantasma da grande crise despertou sentimentos de solidariedade no Congresso, e ajudou a refrescar uma velha e definitiva verdade: estamos todos no mesmo barco, e somos todos responsáveis por conduzi-lo a um porto seguro, deixando frescuras de lado e unindo-se em favor das reformas.

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