São Paulo, domingo, 12 de março de 1995
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Resposta à desordem global

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

Num artigo que escrevi em 1988, denominado Economia e Felicidade, fiz uma descrição sumária em um diagnóstico, ainda incipiente, sobre o caos que se pré-anunciava nas relações financeiras internacionais, crescentemente globalizadas.
Desde então, esta situação de alta instabilidade não fez senão agravar-se até culminar com a atual crise, em que os montantes envolvidos nos fluxos brutos globais, incluindo os chamados mercados derivativos, atingem cifras astronômicas, estimadas em US$ 30 trilhões.
O aspecto principal da crise se concentra nos mercados de câmbio, que se tornaram altamente especulativos a partir das políticas de desregulação financeira promovidas pela dupla Reagan-Tatcher durante a década de 80. A principal consequência deste processo é um aumento do risco sistêmico, que se expressa na impotência dos bancos centrais de controlarem as investidas especulativas sobre as respectivas moedas nacionais.
A crise que agora explodiu os principais mercados de câmbio é radicalmente diferente (em verdade, de sinal contrário) da ocorrida com a moratória do México em 82. Enquanto aquela se manifestava como crise de liquidez, provocada pela valorização excessiva do dólar (diplomacia do dólar forte), a atual aparece como de "excesso de liquidez", provocando desvalorizações sucessivas do dólar, que colocam em sobressalto os principais mercados mundiais.
Como é natural, as políticas de ajuste recomendadas pelo FMI são também de sinal contrário para os dois períodos. Durante a década de 80 os países periféricos foram obrigados a praticar políticas de ajuste destinadas à geração de superávits comerciais para pagar o serviço da dívida externa. Depois de 90, os países da periferia são obrigados a inverter sua política cambial e a aceitar a absorção de recursos externos de curto prazo, em resposta ao excesso de liquidez que se esparramava pelo mundo.
A consequência mais importante deste movimento foi, para os países da periferia, transformá-los de exportadores líquidos de recursos em absorvedores forçados de "poupança externa", qualquer que fosse a sua situação de balanço de pagamentos ou a sua capacidade real de absorção de investimento.
Em nome da liberdade de mercado, impôs-se à América Latina uma desregulamentação financeira e cambial e uma abertura comercial indiscriminada. Com isso, assistimos na região a um festival de ganância especulativa e patrimonial que louvava em prosa e verso as vantagens da integração global e apontava o México como o exemplo a ser seguido.
Aqueles de nós que advertíamos que esta situação levava embutida um processo de "desajuste global" no qual as primeiras vítimas seriam os principais países da periferia, chamassem-se eles Rússia, México, Argentina ou Brasil, fomos chamados de catastrofistas e dinossauros, isto é, personagens em busca do tempo perdido e alheios à modernidade dos novos tempos.
Quando, finalmente, o México sossobrou e mal pode ser socorrido pelo abraço pouco fraterno do seu grande vizinho do Norte, que lhe cobrou o empenho de suas reservas petrolíferas, uma vez mais fomos advertidos que o Brasil era diferente.
Na realidade o Brasil tinha sido diferente e, apesar das vicissitudes do período Collor, não havia ainda escancarado a sua economia nem sobrevalorizado a sua moeda. Deixou de sê-lo com o Plano Real.
Quando ficou evidente a concepção deste plano, começamos a criticá-lo com veemência. Não porque minimizássemos o peso de super-inflação, mas porque a receita nele contida, em particular a malfadada "âncora" cambial e a liberalização de preços e de importações, era apenas um expediente temporário para ganhar as eleições, que provocaria uma grande euforia (a exemplo do Plano Cruzado), após a qual viria inexoravelmente a ressaca de uma possível crise cambial.
Com efeito, a principal arma da política de estabilização converteu-se numa armadilha. Esta arma era a estabilidade cambial que se pretendia manter até o final de 95 mediante uma absorção externa de recursos da ordem de 2% a 2,5% do PIB. Aqui sim, ao contrário da época do Plano Cruzado, supostamente teríamos reservas para bancar a estabilização por um longo período. Mas esta era uma previsão falaciosa para qualquer observador atento que examinasse a situação do México, como sempre o elo frágil da política de internacionalização global em curso na América Latina.
A desgraça do país irmão não pareceu aviso suficiente para reverter a política cambial, apesar de que a súbita aparição e rápido crescimento do déficit comercial obrigaram o Governo a rever pelo menos alguns aspectos da sua política de importações. Foi preciso um brutal agravamento da instabilidade financeira internacional, que se propagou a partir da crise do México e da quebra de um tradicional banco inglês, para que a nossa política cambial finalmente mudasse. Isto ocorreu depois do carnaval passar, como de hábito neste país, e depois de um sem número de desmentidos das principais autoridades do país, do presidente da República a seu ministro da Fazenda.
Embora a nova política tenha sido anunciada como um movimento coordenado e planejado de antecipação a problemas futuros, a impressão que realmente ficou é de que a improvisação foi a sua marca mais notória.
Deve dizer-se, como atenuante à perplexidade de nossas autoridades econômicas, que a mudança na nossa política cambial coincidiu com um "dia de cão" nos mercados internacionais gravemente perturbados por uma descontrolada desvalorização do dólar. Assim, parece completamente descabida a busca de bodes-expiatórios, tais como vazamentos de informações, que, ainda que tenham ocorrido, não explicam a realidade da crise cambial que nos atinge. A nós, como aos demais países periféricos e na verdade a todos que não têm poder no jogo das três moedas centrais que determinam a sorte do sistema, não nos cabe outra alternativa senão entrar num jogo defensivo.
Dentro deste contexto, convém ter claro que não tem o menor cabimento continuar alegando que as reformas da ordem econômica e da previdência vão ter algum impacto sobre a estabilidade cambial e, por derivação, sobre a estabilidade monetária e de preços. O desequilíbrio básico que nos ameaça reside na impossibilidade de poder garantir qualquer estabilidade duradoura a uma moeda subordinada aos imprevisíveis destinos do dólar.
Câmbio e taxas de juros continuam sendo as variáveis decisivas para a inflação e sobre elas pesa mais o movimento de curto prazo de capitais especulativos que a miragem de atração de capitais de "boa qualidade", que aqui aportariam atraídos pela entrega de nossas riquezas minerais e das telecomunicações.
Aliás, e uma vez mais, a experiência cruel da Argentina e do México sobre esta matéria revela a inutilidade da subserviência como estratégia defensiva. O único "mérito" visível dos programas de privatização empreendidos na América Latina seria o fato de haverem propiciado "excelentes negócios" a uma parcela diminuta das elites cosmopolitas e internacionalizadas que operam no continente.
Agora, mais do que nunca, o que nos espera é uma luta titânica para manter um programa de estabilização com o menor custo social possível. Neste sentido, a falta de referência aos problemas sociais no documento recentemente entregue pelo governo não é propriamente animadora. Espera-nos também lutar firmemente pela preservação de um mínimo de auto-determinação dos interesses de uma nação, que ainda se pretende soberana, para poder atravessar melhor o longo período de turbulência que ainda nos espera.
Sem querer fazer apelos falsos à "unidade nacional" e valorizando devidamente o papel democrático da oposição cremos, no entanto, que esta luta deve ser travada por todos aqueles comprometidos com o avanço e consolidação de uma democracia substantiva em nosso país. Esta é inimaginável se as elites do poder continuarem a praticar cegamente as políticas de submissão apregoadas pelos velhos arautos de uma falsa modernidade global.

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