São Paulo, domingo, 12 de março de 1995
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A Paris visionária de Júlio Verne

JÚLIO VERNE

A ferrovia atendia a margem esquerda do rio pelo bulevar Saint-Germain, que se estendia da estação de Orléans aos prédios do Crédito instrucional; lá, quebrando na direção do Sena, cruzava o rio pela ponte de Iéna, munida de um tablado superior por onde passava a ferrovia, para em seguida fundir-se à ferrovia da margem direita; esta última, atravessando o túnel do Trocadéro, ia desembocar nos Champs-Elysées, ganhava a linha dos bulevares, que subia até a praça da Bastilha, e ia encontrar a ferrovia da margem esquerda pela ponte de Austerlitz.
Esse primeiro cinturão de ferrovias abraçava aproximadamente a antiga Paris de Luís 15 exatamente no ponto onde se localizava o muro a que sobrevivera este verso eufônico:
Le mur murant Paris rend Paris murmurant.
(O muro que mura Paris faz Paris murmurar.)
Uma segunda linha da ferrovia unia entre si os antigos faubourgs de Paris, prolongando, num total de 32 quilômetros, os bairros que antigamente se situavam além dos bulevares exteriores.
Acompanhando a linha da antiga estrada perimetral, uma terceira ferrovia cobria um percurso de cinquenta e seis quilômetros.
Finalmente, uma quarta rede reunia a linha dos fortes e servia a uma extensão de mais de cem quilômetros.
Como vemos, Paris derrubara sua muralha de 1843 e se apropriara de boas parcelas do bois de Boulogne, das planícies de Issy, de Vanves, de Billancourt, de Montrouge, de Ivry, de Saint-Mandé, de Bagnolet, de Pantin, de Saint-Denis, de Clichy e de Saint-Ouen. A oeste, as elevações do Meudon, Sèvres e Saint-Cloud haviam interrompido suas invasões. A delimitação da capital atual estava assinalada pelos fortes de Mont-Valérien, Saint-Denis, Aubervilliers, Romainville, Vincennes, Charenton, Vitry, Bicêtre, Montrouge, Vanves e Issy; uma cidade de 27 léguas de contorno: ela devorara o departamento do Seine inteirinho.
Quatro círculos concêntricos de vias férreas formavam, assim, a rede metropolitana; eles estavam ligados uns aos outros por entroncamentos que, na margem direita, acompanhavam os bulevares de Magenta e de Malesherbes prolongados, e na margem esquerda as ruas de Rennes e des Fossés-Saint-Victor. Era possível circular de uma extremidade à outra de Paris com a maior rapidez.
Essas ferrovias existiam desde 1913; haviam sido construídas às expensas do Estado, de acordo com um sistema apresentado no século passado pelo engenheiro Joanne.
Naquela época, muitos projetos foram submetidos ao governo. Este determinou que fossem examinados por um conselho de engenheiros civis, visto que os engenheiros de pontes e estradas só passaram a existir de 1889 em diante, data da supressão da Escola politécnica; mas esses senhores permaneceram divididos durante muito tempo em torno da questão; uns queriam instalar uma ferrovia de superfície nas principais ruas de Paris; os outros preconizavam as redes subterrâneas imitadas do railway londrino; mas o primeiro desses projetos teria exigido a instalação de barreiras fechadas à passagem dos trens; isso determinaria o atropelo de pedestres, carros e charretes que bem se pode imaginar; o segundo envolvia enormes dificuldades de execução; aliás, a perspectiva de enfiar-se num túnel interminável não teria sido nada atraente para os viajantes. Fora necessário refazer todas as ferrovias abertas anteriormente nessas condições deploráveis, entre outras a ferrovia do bois de Boulogne, que, tanto por suas pontes como por seus subterrâneos, obrigava os viajantes a interromper a leitura de seu jornal 27 vezes num trajeto de 23 minutos.
Aparentemente, o sistema Joanne reunia todas as qualidades de rapidez, facilidade e bem-estar e, efetivamente, há 50 anos as ferrovias metropolitanas funcionavam a contento de todos.
O sistema consistia em duas vias separadas, uma de ida e outra de volta; com isso não havia possibilidade de encontro em sentido oposto.
Cada uma dessa vias estava assentada acompanhando o eixo dos bulevares, a cinco metros das casas, no alto da borda externa das calçadas; suportadas por elegantes colunas de bronze galvanizado, uniam-se entre si mediante armações recortadas expostas; a espaços, essas colunas tinham um ponto de apoio sobre as casas ribeirinhas, por intermédio de arcadas transversais.
Assim, esse longo viaduto, ao mesmo tempo que suportava a via férrea, formava uma galeria coberta sobre a qual os viandantes encontravam um abrigo da chuva ou do sol; a rua asfaltada estava reservada aos carros; com uma ponte elegante, o viaduto cruzava as principais ruas que cortavam seu trajeto, e o elétrico, suspenso à altura das sobrelojas, não oferecia o menor obstáculo à circulação.
Algumas casas ribeirinhas, transformadas em pontos de espera, formavam estações; elas se comunicavam com a via férrea por intermédio de amplas passarelas; embaixo se abria a escada de rampa dupla que dava acesso ao salão dos viajantes.
Nos bulevares, as estações do elétrico situavam-se no Trocadéro, na Madeleine, no bazar Bonne Nouvelle, na rue du Temple e na praça da Bastille.
Esse viaduto, sustentado por simples colunas, sem dúvida não teria resistido aos antigos meios de tração, que exigiam locomotivas de grande peso; mas, graças à aplicação de propulsores novos, as composições eram extremamente leves; elas se sucediam de dez em dez minutos, levando, cada uma delas, mil viajantes em seus vagões rápidos e confortavelmente dispostos.
As casas ribeirinhas não sofriam nem com o vapor nem com a fumaça, pela simples razão de que não havia locomotiva. Os trens andavam levados por ar comprimido, de acordo com um sistema William, preconizado por Jobard, famoso engenheiro belga que florescia aí por meados do século 19.
Um tubo vetor, de 20 centímetros de diâmetro e dois milímetros de espessura, imperava ao longo de toda a extensão da linha, entre os dois trilhos, contendo um disco de ferro maleável que deslizava em seu interior impulsionado pelo ar comprimido a várias atmosferas e fornecido pela Sociedades das Catacumbas de Paris. Esse disco, movido a grande velocidade no interior do tubo como a bala no cano, levava consigo o primeiro vagão do trem. Mas como esse vagão estava ligado ao disco fechado no interior do tubo, visto que esse último não podia ter a menor comunicação com o exterior? Pela força eletromagnética.
Com efeito, o primeiro vagão levava entre suas rodas ímãs distribuídos à direita e à esquerda do tubo, o mais perto possível, mas sem tocá-lo. Esses ímãs operavam através das paredes do tubo sobre o disco de ferro maleável. Este, ao deslizar, arrastava o trem atrás de si, sem que o ar comprimido tivesse uma saída qualquer por onde escapar.
Sempre que uma composição tinha que parar, um empregado da estação girava uma torneira; o ar saía e o disco permanecia imóvel. Fechada a torneira, o ar forçava o disco e a composição retomava sua marcha imediatamente rápida.
Assim, portanto, com esse sistema tão simples, de manutenção tão fácil, nada de fumaça, nada de vapor, nada de choques, possibilidade de subir todas as rampas —e a impressão que se tinha era de que esses caminhos deviam existir desde os tempos imemoriais.
O jovem Dufrénoy adquiriu seu bilhete na estação de Grenelle e dez minutos mais tarde parava na estação da Madeleine; desceu para o bulevar e andou na direção da rue Impériale, aberta no eixo da Opéra, até o jardim das Tuileries.
A multidão tomava as ruas; a noite começava a descer; as lojas suntuosas projetavam à distância clarões de luz elétrica; os candelabros instalados de acordo com o sistema Way, mediante a eletrização de uma rede de mercúrio, resplandeciam numa claridade incomparável; eles estavam unidos uns aos outros por fios subterrâneos; as 100 mil lanternas de Paris iluminavam-se num mesmo instante, de um só golpe.
Não obstante, algumas lojas antiquadas mantinham-se fiéis ao velho gás hidrocarburado; é verdade que a exploração de novas hulheiras permitia que o mesmo fosse distribuído a dez centavos o metro cúbico; mas a empresa obtinha ganhos consideráveis, sobretudo ao distribuí-lo como agente mecânico.
Com efeito, dentre os inúmeros carros que sulcavam o leito dos bulevares, a maioria avançava sem cavalos; eles se moviam graças a uma força invisível, por intermédio de um motor a ar dilatado pela combustão do gás. Era a máquina Lenoir aplicada à locomoção.
A principal vantagem dessa máquina, inventada em 1859, era suprimir caldeira, fornalha e combustível; um pouco de gás de iluminação, misturado a ar introduzido sob o pistão e inflamado pela fagulha elétrica, produzia o movimento; bicos de gás misturados nas diferentes estações de carros forneciam o hidrogênio necessário; aperfeiçoamentos recentes haviam possibilitado a supressão da água, antes utilizada para resfriar o cilindro da máquina.
Esta, potanto, era fácil, simples e manobrável; o mecânico, sentado em seu lugar, guiava uma roda diretora; e um pedal, situado embaixo de seu pé, permitia que modificasse instantaneamente a marcha do veículo.
Os carros, com um cavalo-vapor de potência, não chegavam a custar, por dia, o preço de um oitavo de cavalo; o gasto de gás, controlado com precisão, permitia que se calculasse o trabalho útil de cada carro e os cocheiros já não podiam, como antigamente, enganar a Companhia.
Esses carros de aluguel tinham um alto consumo de hidrogênio, sem falar naquelas enormes caçambas, carregadas de pedras e outros materiais, que utilizavam a força de 20 ou 30 cavalos. Esse sistema Lenoir tinha ainda a vantagem de nada custar durante as horas de inação, economia impossível de realizar-se com as máquinas a vapor, que devoram seu combustível mesmo quando paradas.
Os meios de transporte eram rápidos, portanto, nas ruas menos atravancadas que no passado, pois uma determinação do ministério da Polícia proibia que carretas, carros de carga ou caminhões circulassem depois das dez da manhã fora de certas ruas reservadas.
Essas diversas melhorias convinham bem àquele século febril, em que a multiplicidade dos negócios não deixava espaço ao repouso e não permitia atrasos.
O que teria dito um de nossos ancestrais ao ver aqueles bulevares iluminados com um esplendor comparável ao do sol, aqueles milhares de carros circulando sem ruído sobre o asfalto surdo das ruas, aquelas lojas ricas como palácios, de onde a luz se projetava em irradiações brancas, aquelas vias de comunicação grandes como praças, aquelas praças vastas como planícies, aqueles hotéis imensos, em que 20 mil viajantes se hospedavam suntuosamente, aqueles viadutos tão leves; aquelas longas galerias elegantes, aquelas pontes lançadas de uma rua à outra e, finalmente, aqueles trens cintilantes que pareciam sulcar os ares com uma rapidez fantástica?
Teria ficado muito surpreendido, sem dúvida; mas os homens de 1960 já não se admiravam diante dessas maravilhas; serviam-se delas tranquilamente, sem ficarem mais felizes por isso, pois, com seu ritmo acelerado, suas atividades apressadas, seu ardor americano, percebia-se que eram acossados sem interrupção nem piedade pelo demônio da fortuna.

Extraído do livro "Paris no Século 20", traduzido para a editora Ática por HELOISA JAHN

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