São Paulo, domingo, 12 de março de 1995
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A chegada do milênio

BORIS FAUSTO

Quando o ano mil se aproximava, o mundo cristão foi atravessado por muitas angústias. O povo miúdo esperava o fim dos tempos, anunciado pelos pregadores. A hierarquia eclesiástica não seguia este caminho, mas tinha consciência de que a chegada do milênio marcava um corte na história humana; um corte teológico que, como lembra Georges Duby, tinha como fundamento o texto bíblico do Apocalipse.
O texto fala do anjo que desce dos céus, tendo nas mãos a chave do abismo e uma enorme corrente. Com estes instrumentos, acorrenta Satã e o encerra no abismo, por mil anos. Durante todo este tempo, a serpente satânica deixa de atormentar os povos, retornando porém, no fim do primeiro milênio. No ano mil, Satã voltaria a seduzir os homens, levando-os a confrontos e guerras tão numerosos como as areias do mar.
Há algo em comum entre a expectativa da chegada do segundo e do terceiro milênio. Em outros termos, constatamos um semelhante sentimento coletivo de insegurança, quanto aos destinos do mundo. Ele não decorre apenas de um esoterismo numérico. Os acontecimentos ganharam, nos últimos anos, uma velocidade insuspeitada, como se uma mão invisível levasse nações e indivíduos a reordenar suas relações. Não se trata da tranquilizadora mão invisível do mercado e sim de outra coisa.
No ano mil, o anjo conseguiu segurar Satã. Mas ele, que nunca deixou de influir nos destinos do mundo, agora se liberta das correntes. Só que, como Satã não encerra toda a maldade, assim como o anjo não encerra todo o bem, a volta da serpente traz temores e, ao mesmo tempo, imensas possibilidades.
Sem pretensões a um precário exercício de futurologia, é forçoso constatar que o mundo vive uma grande mutação, de tal ordem que os atuais viventes, crianças ou velhos, não terão condições biológicas de conhecer todos os seus desdobramentos. As linhas de força desta mutação concentram-se na emergência de, pelo menos, três fenômenos.
O primeiro deles é o da revolução produzida pela informática, cuja linguagem tem a força da alfabetização. Quem não conhece pelo menos seus rudimentos, corre o risco de converter-se em analfabeto dos novos tempos. A informática vem abrindo imensos campos. No campo financeiro, cresceu incrivelmente a rapidez das comunicações e das decisões, para bem ou para mal.
Na Educação, ocorre uma até há pouco impensável difusão de conhecimentos, acompanhada de dúvidas a respeito da sobrevivência do livro. Desde a invenção da imprensa, ele constitui o instrumento por excelência da cultura, no plano prático ou no simbólico. Se não assistimos à morte do livro, estaríamos presenciando a agonia de sua velha forma, acumulada nas grandes bibliotecas?
O segundo fenômeno é o da desintegração da União Soviética, que revolucionou as relações internacionais. A consolidação de um regime democrático parece infelizmente improvável na atual Federação russa, dada a fraqueza da sociedade civil e a ausência histórica de uma cultura política democrática, carência ainda mais aguda do que a existente na América Latina.
Ao mesmo tempo, a implosão da URSS simbolizou o fim de uma utopia igualitária, nascida no século 19. Essa utopia teve tal força que permitiu vislumbrar, nos horrores do stalinismo, a aurora de novos tempos. O estatismo, a ditadura do proletariado são relíquias do passado. Mas como muitos dos males que deram origem à utopia não desapareceram e outros se acresceram, como a dilapidação da natureza e o consumismo deslavado em contraste com a pobreza, vivemos a tentativa de superá-los, através de caminhos incertos.
Por último, assistimos à reemergência do nacionalismo e do fundamentalismo. Hoje, tornou-se mais fácil dirimir, na mesa de negociações, conflitos de classe do que oposições nacionais ou religiosas. A volta do nacionalismo nem sempre tem um sentido negativo como na Iugoslávia. Pode significar o desejo de manter identidades culturais, em um mundo tendente à uniformização.
Se a religião é o ópio dos povos, eles parecem estar inebriados. Evangélicos de todos os tipos impõem, no Ocidente, padrões restritivos de comportamento, atraindo massas carentes de um sentido para suas vidas. No Islã, o figurino ocidental ou o nacionalismo pan-árabe perderam terreno, diante de um fundamentalismo formulado por intelectuais que oferecem um passaporte para o céu às multidões desorientadas.
Neste mundo, há poucas flores, mas nem tudo são desgraças. Em suas memórias, Luis Bu¤uel propõe um acordo com os poderes do alto. Aceitaria a mortalidade —que remédio?— em troca do direito de, a cada século, espiar as bancas de jornais. Se conseguiu este acordo, bem que poderia obter, para todos nós, uma redução do prazo de retorno à terra, pois o mundo, visto de longe, está cada vez mais fascinante.

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