São Paulo, segunda-feira, 13 de março de 1995
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Cinemateca está na rota da destruição

RUDÁ DE ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Constrangedora, ou ridícula, para ser claro, é a atual situação da Cinemateca Brasileira. Para abordar essa conhecida instituição creio não ser mais necessário textos introdutórios ressaltando sua importância, quantificando e exemplificando seu acervo e serviços prestados à comunidade nos quase 50 anos de atividades.
Limito-me a lembrar aos desatentos, que, ao lado da Biblioteca Nacional (papéis) e do MASP (artes plásticas), estou tratando da instituição mais notável referente a acervo de imagens em movimento (cinema/televisão) deste continente. Apesar de seus percalços, incêndios e misérias, ainda abriga uma coleção extraordinária; um painel fundamental da história brasileira deste século.
A persistência pela sobrevida, com o tempo, transformou a Cinemateca numa instituição acomodada, convencional, no panorama cultural brasileiro. Nem descrentes, nem ipojucas, ousam discutir a sua necessidade, sua conveniência; como aquela da igreja ou delegacias de aldeia, mesmo quando nessas não há padres ou delegados.
Assim, seus desacertos são compreendidos, seus erros são tolerados, qualquer rota que assuma passa a ser admitida como caminho circunstancial necessário à sua sobrevivência. Poucos questionam e quando o fazem emitem vozes baixas, não audíveis. Miudezas, bobagens, deixemos de lado para irmos ao que interessa.
Ficando apenas em números aproximativos, admitamos que o seu acervo fílmico chega a 100.000 rolos. Considerando-se a diversidade de tamanho destes, isso pode significar 20 milhões de metros de filme, o que representaria 13.500 horas de projeção contínua. Qualquer mártir cinemaníaco levaria sete anos para assistir esse material, dedicando oito horas por dia, sem intervalo ou pipocas.
Caso esse herói resolvesse proporcionar um tratamento primário de preservação a esse material, pegando, como tanto, rolo a rolo do primeiro ao último, permaneceria trabalhando 104 anos, sem férias, um século, para no fim ver o acervo destruído pela ação do tempo desperdiçado em seu próprio trabalho.
Com uma pontinha de exagero esse é o ritmo atual da Cinemateca, que conta com quatro ou cinco técnicos de vontades boas e salários míseros, cada um correndo utopicamente atrás de seus milhares de quilômetros de filmes para conseguir, em um ano, dispensar revisões ou outros cuidados a apenas meio por cento desse acervo.
Tal serviço, mais do que uma empreitada, parece sim um balé mitológico que daria inveja a Sísifo, pois a velocidade da deterioração dos filmes nas condições em que se encontram é incrivelmente superior a esse trabalho, obrigando sempre esses funcionários a voltarem ao início para socorrer os rolos já tratados que retomaram, impiedosamente, o rumo da podridão.
Conclusão: no ritmo atual da Cinemateca, fosse possível os técnicos não voltarem aos filmes já cuidados, o trabalho em todo o acervo estaria previsto para dois séculos. Como isso não é possível, pior, continuaremos com Sísifo aguardando a breve deterioração da maior parte do patrimônio.
O mal é que as pessoas não equacionam esses dados primários, portanto, sem avaliações, permanecem inconscientes crendo tranquilamente que esse notável acervo está bem cuidado pelo fato de estar nas mãos da tradicional Cinemateca Brasileira.
Tradicional sim, em perder filmes por falta de recursos para os salvar. A título de ilustração do drama, constate-se que boa parte dos serviços de preservação (sic) do ano passado foi aquele de destruir materiais já irrecuperáveis.
O constrangedor, ou ridículo, dessa situação é que o Poder Público, com o apoio da iniciativa privada, financia os serviços atualmente desenvolvidos, imaginando que estão contribuindo de forma definitiva para a preservação desse acervo. Forçando a análise, poderíamos admitir que se trata de dinheiro jogado fora, pois o retorno efetivo é mínimo: são resultados excepcionais, simples exemplos do que deveria ser feito em larga escala.
Frequentemente tais iniciativas encortinam a situação dramática e ainda são coroadas com os aplausos gerados pelas habituais badalações em torno do restauro de um ou outro filme mais conhecido.
Essa análise extremada serve para dar uma visão do problema em sua plenitude. Por outro lado, não se pode dispensar esses apoios restritos.
Deixassem as fontes de fornecer os recursos, minguados que sejam, iríamos ao pior, destruindo-se o embrião existente, única condição que a Cinemateca pode honestamente representar, o que já é muito, pois significa a reunião, a guarda e a catalogação desse acervo.
Bem ou mal, esse embrião poderia ser o ponto de partida para a execução de uma política decente para as questões desse patrimônio.
Mas, infelizmente, a situação está de tal forma estratificada que notamos, mesmo entre as pessoas da Cinemateca, uma miopia causada provavelmente pelos calos formados com as inúteis batidas de cabeça em gabinetes do poder público e privado para a busca de recursos. Assim criou-se uma situação distorcida, distanciada do problema global, pois qualquer coisa que se obtenha para a instituição é psicologicamente de enorme valor.
A consequente timidez que tomou conta diante das eternas recusas para soluções definitivas faz com que se termine por pedir pouco, cada vez menos, o pouco, que é o melhor que nada, exercendo uma política errada, política humilde de rosto abaixado e chapéu na mão, voltada à simples manutenção da sobrevivência da cinemateca que, dessa forma, acabará por destruir a sua essência, o seu acervo.
Evidentemente, o exercício de uma política apropriada exigiria renovações. Renovação de mentalidade; reformulação da ação junto aos poderes públicos; reorganização administrativa e dos métodos técnicos. Praticamente, um projeto reformado para a Cinemateca. É fundamentalmente seu Conselho, com o apoio da diretoria, seu corpo funcional, sua Sociedade de Amigos e eventuais colaboradores, quem poderá definir os rumos, ou novos rumos, a seguir. Tais segmentos seguramente dispõem de consciência, inspiração e criatividade para tal empreendimento.
Para se atacar de frente o problema é indispensável considerar-se que a Cinemateca se encontra em uma conjuntura crítica que não se desfaz com paliativos, aumentos percentuais de orçamento, desdobramento de atividades remuneradas, etc. É uma situação que requer medidas profundas; é uma situação que exige investimentos estruturais de peso.
Uma é a construção das câmeras climatizadas, cujo custo não representa exagero, uns R$ 500 mil, metade do preço de um apartamento de luxo. Já o restauro e a reprodução dos filme é algo significativo, pois representa um programa sofisticado a ser elaborado por especialistas, no qual se inclui o provimento de um quadro técnico apropriado, a remontagem do laboratório, ora desativado; a análise do estado de cada peça do acervo e seus primeiros tratamentos; a reprodução de todas as matrizes em caminho da deterioração.
É impossível um orçamento disto sem um projeto, entretanto, para uma idéia de grandeza, deixando de lado o maior custo dos coloridos e casos especiais de restauro, assim como aqueles que apenas necessitam reparos superficiais, pegue-se como parâmetro o custo médio do restauro dos longas em preto e branco: R$ 10 mil por filme, R$ 1 mil cada rolo.
Estes dados nos levam a imaginar que o custo do restauro de todo o acervo poderia ser algo em torno dos R$ 100 milhões. No âmbito do cinema norte-americano, representaria a produção de dois filmes caprichados, um negócio às vezes rentável, outras que termina no brejo. No âmbito da marginalizada cultura brasileira é muito, pode parecer astronômico. No âmbito do país é nada, pensando-se na significação do patrimônio para o mesmo.
Posso imaginar que, diante da situação atual do Brasil, para a solução da questão financeira, fatalmente seria exigido um plano quinquenal ou algo equivalente. Também não se pode esperar muito mais do que cinco anos, seja qual for o plano, pois boa parte dos filmes apodreceria.

Questão de Estado
Como se pode deduzir, a solução do problema não depende apenas do Ministério da Cultura, como deveria ser, já que a Cinemateca é uma instituição vinculada a esse órgão. Este não dispõe de recursos ordinários para suprir qualquer projeto desta monta.
Mas, nem por isso deixa de ser uma questão de Estado, dos poderes públicos, pois a iniciativa privada brasileira não se interessaria em investir num projeto sem a mínima garantia de um breve retorno, ao menos institucional, correspondente ao dinheiro aplicado. Para esta deixemos o projeto da sede administrativa e cultural da Cinemateca, no antigo matadouro. Este produto dará fácil retorno às empresas investidoras.
Examinando os debates na imprensa e a situação atual da administração pública, poderia dar a impressão de que discorro inoportunamente devendo aguardar melhores tempos.
Entretanto, como se fala tanto nas necessidades de mudanças radicais no país, pergunto-me por que não se incluir mais esta nas pautas prioritárias. Digo isto franca e realisticamente, lembrando-me de que acervo cultural é ferramenta educativa e a educação tem sido apresentada oficialmente como prioridade essencial.

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