São Paulo, segunda-feira, 13 de março de 1995
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Wes Craven vê o horror como fábula

MARCEL PLASSE
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Wes Craven tem a voz grave, pausada e uma pronúncia dramática, que coincide com sua filmografia de psicopatas do inferno. Desde que criou Freddy Krueger, há dez anos, em "A Hora do Pesadelo", Craven entranhou-se no imaginário pop. E por ocasião de seu novo filme, "O Novo Pesadelo - O Retorno de Freddy Krueger", consagrou-se com as melhores críticas de sua carreira.
"Deve estar na hora de me aposentar", ele brinca.
Longe disso, Craven está terminando a edição de "Vampire in Brooklyn", que traz Eddie Murphy no papel de um vampiro. Entre os projetos sobre sua mesa, estão os roteiros de um filme sobre "Branca de Neve" e um remake de "The Hunting", feito por Robert Wise em 1964.
Ele conta que esteve prestes a filmar em São Paulo em 1988, quando buscava locações para "A Maldição dos Mortos-Vivos", um filme sobre zumbis: "A produção achava que seria muito perigoso ir ao Haiti, onde a história se passa". Mas, para Craven, o Haiti não era aqui e a locação aconteceu mesmo na terra de Papa Doc.
O incidente mostra um aspecto curioso na carreira de Craven, que fez fama como diretor de horrores fantásticos, mas que se diz obcecado pela realidade. "Todas as minhas histórias são baseadas em fatos reais", ele revela, com uma firmeza de arrepiar. Ele falou à Folha, por telefone, de seu escritório em Los Angeles.

Folha - O que o levou ao tom autoral de "O Novo Pesadelo" e ao intertexto considerado erudito para o gênero?
Wes Craven - Tudo começou num jantar com Heather Lagenkamp (atriz de "A Hora do Pesadelo"), a quem não via há anos. Heather me falou que sua vida tinha sido bastante afetada por Freddy, o que me deu a idéia de fazer um filme sobre ela e a aura que cerca os filmes de horror. A história acabou se tornando uma espécie de documentário e também uma parábola.
Os críticos desse tipo de filme costumam dizer que eles são má influência para o público. Eu vejo a questão pelo ângulo inverso, como uma catarse, onde liberamos a tendência para o mal que existe em todo o ser humano. Na história, o mal, representado por Freddy, pode escapar para o mundo real, se pararmos de fazer filmes de horror. É como eu vejo: se não fosse por nós, diretores desses filmes, haveria muito mais horror no mundo.
Folha - O papel da psicóloga, que vê o horror como fonte de distúrbios mentais, foi baseado em algo dito sobre seus filmes?
Craven - Foi baseado no Dr. Hefner, mentor do MPAA (Motion Pictures Arts Association), que cuida da censura nos EUA. Todos os meus filmes tiveram que ser submetidos a esse homem e seu grupo, que sempre impuseram suas idéias sobre o meu trabalho, dizendo o que cortar e o que mudar. A meus olhos, ele é o arquiinimigo do cinema.
Folha - Até que ponto a história de Heather no filme é real?
Craven - Bem próxima da realidade. Heather chegou a se perturbar por usar partes de sua vida na filmagem. Ela tem uma criança com a idade do menino do filme e um marido que trabalha com efeitos especiais. Há mais coincidências, mas não devo revelar.
Folha - Você costuma filmar a partir de experiências reais?
Craven - O mundo real é cheio de histórias incríveis. De "A Maldição dos Mortos-Vivos", sobre vudu, a "Criaturas Atrás da Parede", sobre crianças encarceradas durante toda a vida num velho casarão, meus filmes costumam partir de reportagens que leio.
Folha - Esses dois filmes têm um forte contexto social —a miséria do Haiti e o paradoxo entre os sem-tetos e a especulação imobiliária. Você crê que o horror pode ser politizado?
Craven - Claro. Acho que os filmes de horror até tendem a ter um substrato político ou social, porque ficam à margem do grande dinheiro de Hollywood.
Folha - A criação de Freddy também foi factual?
Craven - A história saiu de uma reportagem sobre refugiados adolescentes do Sudeste asiático, no final dos anos 70. Todos tiveram o mesmo pesadelo e morreram na noite seguinte, enquanto dormiam. E o visual de Freddy foi baseado num homem que me assustava quando eu era criança.
Folha - Dado o paralelo, em "O Novo Pesadelo", entre Freddy e a bruxa de "João e Maria", você encara o horror como um novo tipo de fábula?
Craven - Sim. Norman Bates e Freddy se tornaram bichos-papões modernos —e também mitos—, porque repercutiram na cultura.
Folha - Por que as crianças gostam tanto de horror?
Craven - Porque lida com algo que é importante para elas: o medo. Só aprendemos a lidar com o medo ao crescer. Para as crianças, ver um filme de horror é dar forma ao desconhecido. É uma maneira de se familiarizar com o que as aflige e descobrir que aquilo não é tão assustador quanto elas pensam.
Os filmes de horror tendem a passar confiança ao conjurar o pior e fazer com que o personagem principal supere tudo.
Folha - Se virou moda gostar do sangue e da extrema violência de Quentin Tarantino, por que diretores de horror permanecem marginalizados?
Craven - Às vezes me pergunto isso. Acho que tem a ver com o uso de armas nos filmes de Tarantino. Armas são muito populares nos EUA —são uma fantasia masculina. Os filmes de horror não costumam trazer armas.
Joe Dante e, agora, David Cronenberg abandonaram o horror. Você é o próximo?
Craven - Me incomoda ficar contando sempre a mesma história, sobre um psicopata correndo atrás de adolescentes. Depois de ter feito "Quadrilha de Sádicos" e "Last House on the Left", que praticamente inventaram esse tipo de filme, qualquer outro seria redundante. Mas não pretendo abandonar o horror.
Meu objetivo é fazer filmes mais sofisticados. Tenho visto bons filmes no gênero, como "Man Bites Dog" e até "O Corvo", que mostram ainda existir ângulos interessantes no horror.
Folha - O horror pode se sofisticar?
Craven - Ele já foi mais sofisticado, com Polanski, William Friedkin e outros diretores. Na verdade, não há motivo para o horror ser menos inteligente do que qualquer outro tipo de filme.

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