São Paulo, terça-feira, 14 de março de 1995
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Quem tem medo da reforma?

JOSÉ MARTINS FILHO

Na partida de xadrez que o governo começa a jogar com o Congresso e com a sociedade para a definição de suas reformas estruturais —constitucionais algumas, outras não—, as universidades públicas aguardam com ansiedade o movimento que lhes concerne.
É uma angústia diferente daquela de quatro anos atrás, quando o ensino público superior se viu subitamente ameaçado pelo ideário do privatismo sem fronteiras. Agora, ao menos, sabe-se de antemão que o governo não tem as universidades públicas na conta de bens de produção que podem ser vendidos ou de escritórios burocráticos que devem ser desativados.
As universidades sabem que seus padrões de eficiência estão longe do que delas se espera —o que terminou por gerar a síndrome, a meu ver equívoca, de uma crise permanente—, mas a visão geral do sistema de ensino superior mostra que seus defeitos são antes um problema típico de juventude que de erro histórico ou inaptidão congênita, como querem alguns.
Na verdade, embora já vastamente capilarizado, o sistema universitário brasileiro mal começou a existir. É um dos mais jovens do mundo ocidental e não se pode ignorar que, no contexto latino-americano, onde não faltam instituições seculares, ele é seguramente o melhor.
Como disse Machado de Assis, o chicote muda de figura dependendo da posição que se o vê: se do cabo é uma coisa, se dos cordéis é outra. Aos acadêmicos da América hispânica, que certamente nos vêem de modo diverso do que nos vemos, encanta que muitas universidades brasileiras sejam capazes de conjugar a atividade do ensino com programas de pesquisa por vezes bastante complexos e de, ao mesmo tempo, oferecer um leque de serviços sociais —no campo da saúde, da cultura e do lazer— que as tornam fortemente vinculadas a suas comunidades regionais e, na maioria dos casos, absolutamente imprescindíveis ao bem-estar dessas populações.
Basta imaginar o que aconteceria se se despojasse a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), a USP (Universidade de São Paulo), a Unesp (Universidade Estadual Paulista) e as universidades federais de seus hospitais de clínicas: o atendimento de saúde à população mais carente entraria imediatamente em colapso.
Entretanto, de nada nos serve ser indulgentes para com um sistema que, por ser tão novo, heterogêneo e pródigo em desníveis de toda ordem, bem por isso vem requerendo uma reforma de base. Uma vez que as próprias universidades têm consciência dessa necessidade —e não se fala de outra coisa nos conselhos de reitores e nos simpósios de interesse institucional—, era de imaginar que o governo, no momento em que se propõe a fazer reformas amplas, não deixasse de lado essa importante etapa do processo.
Tenho observado que, do binômio operacional com que o governo espera pôr em marcha o carro da reforma —de um lado, a concessão de autonomia de gestão financeira às universidades e, de outro, a avaliação periódica de seus indicadores de desempenho—, o que mais assusta aos administradores é o privilégio da liberdade com plena responsabilidade gerencial, ou seja, aquela que confere autonomia não só para as questões de custeio e investimento, mas também para a gestão e a definição de políticas salariais próprias, com toda a carga de conflitos que isso acarreta.
Creio que é justamente nesse ponto que o sistema mais precisa amadurecer, porque no fundo não há caminho mais direto para que as universidades venham a otimizar suas estruturas, aprendam a racionalizar seus recursos e tenham a coragem de eliminar aquelas necessidades que, não estando vinculadas a suas atividades básicas (o ensino, a pesquisa e a extensão), passaram a existir exclusivamente em função do aparelho administrativo.
Se para alguns a autonomia plena ainda parece um risco, pois há quem a confunda com a perda do anteparo governamental, as universidades públicas paulistas estão aí para testemunhar que vale a pena corrê-lo.
A partir dessa prerrogativa, conquistada em 1989 num processo em que o atual ministro da Educação teve, aliás, enquanto reitor, papel preponderante, essas universidades puderam pela primeira vez estabelecer seu planejamento orçamentário e programar sua demanda futura de modo ordenado e racional, fixando inclusive uma política de recuperação salarial, no momento em pleno curso.
Puderam também ser cobradas e demonstrar que fizeram jus à confiança que o Estado depositou nelas. Não consta que tenham entrado em colapso por causa disso. Muito ao contrário.

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