São Paulo, domingo, 26 de março de 1995
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Uma tela na boca

CABRERA INFANTE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sim: uma tela de prata, não em sua boca, mas nos dois olhos. Devo saber do que estou falando porque fui eu que nasci com uma tela desse metal nos olhos. A tela era a do cinema e a primeira coisa que vi foi como fumaça nos olhos, já que a imagem era de um prata enevoado como fumaça, mas não flanava na platéia, e sim na tela. Como sabemos, a visão do cinema está nos olhos de quem olha. Os filmes não passam de um trompe l'oeil que faz sucesso e, desde a chegada do som, um trompe l'oreille, com mais cartaz ainda.
Mas é preciso admitir que há algo de excessivo no cinema. Deve ser a tela, que já não é, como na era heróica, um lençol branco mas, segundo Katz, a enciclopédia do cinema, "o material refletor sobre o qual se projeta o filme". Em vez de refletor, eu deveria dizer reflexivo, porque para mim o cinema é uma lição de moral a 24 quadros por segundo, que é o que dá a ilusão de movimento. Devida, como se sabe, a um defeito do olho: a persistência retiniana.
Como num espetáculo de mágica, onde a mão é mais rápida que o olho, para o cinema o olho é mais lento que a imagem. A tela, além disso, tem uma desproporcional proporção de 1:33:1 (nunca, desde que a maçã caiu na cabeça de Newton, uma equação deu tanto o que falar) e este formidável aspecto transforma todos nós em anões: as estrelas, os atores e o tudo o que os rodeia são versões de Gulliver e nós, formigas ou cigarras, somos liliputianos na praia vendo os gigantes dormir, acordar e, nos tempos que correm, fornicar com posturas (e bravuras) de trapezistas, com a cama como rede.
O cinema é um arte de massas, mas muito barroca. Suas obras-primas ("Cidadão Kane", "Centauros de la Pradera", "A Morte num Beijo", "Um Corpo que Cai" ou "Blade Runner", para não mencionar senão obras ímpias) são todas barrocas. A arte no cinema tenta sempre alcançar as mais altas cotas, e às vezes tudo o que consegue é o logo da Paramount, um pico comercial. Agora tudo se reduz a sexo, mentiras e videotape. (A existência de um filme com sucesso de crítica (!) e de público com esse título não passa de uma assunção da realidade ao céu de estrelas.) Todos os públicos são iguais e hoje (haja...) todos os filmes são sequelas e alguns merecem a "nata da intelectualidade".
O cinema induz à paramnésia, esse estado em que todos os sonhos se confundem com a realidade, e em que às vezes a realidade se confunde com o sonho. Os filmes não nascem, se fazem e, como um veículo, rodam. A memória do cinema é um claro objeto do desejo, só que em preto e branco, e depois em glorioso Technicolor. E o espectador que esquece os filmes passados é obrigado a ver remakes —ou seja, requentados. Lembro-me de todos os filmes que vi em minha vida. Como o herói e vilão Mr. Memory (de Hitchcock, em "Os 39 Degraus"), sou todo olhos e ouvidos.
Vi meu primeiro filme aos 29 dias de idade. Minha mãe me levou ao cinema no colo, para ver uma peça de museu que era, na época, uma estréia, mais hípica que épica. Chamava-se "Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse", e assim se chama em seu remake. Não me esqueci de Valentino, ídolo de minha mãe, mas há pouco tempo fui obrigado a ver Glenn Ford, o homem da "Gilda", dançar um tango que ritmava com mambo. Aqueles primeiros cavaleiros não eram quatro, éramos três: o operador de cinema, minha mãe e eu. Meu pai não estava de corpo presente, embora estivesse vivo, porque simplesmente não gostava de cinema que não fosse político: russo, da guerra civil espanhola, mesmo que fosse de Hollywood. Minha mãe, romântica que era, aspirava às estrelas —Garbo, Crawford, Marlene Dietrich, com quem se parecia, com seus precoces cabelos brancos.
Naquela época (nos anos 30) em minha cidade, que não tinha mais de 8.000 habitantes, havia três cinemas, e toda noite passava um filme diferente. Isso se explica pelo que Néstor Almendros chamou de cinemania, mas era cinevida. Só se vivia de noite, na sala escura cheia de imagens de ficção e vertigem: eram os sonhos por outros meios. Eu era, e continuo sendo, um filho do cinema.
Sempre dei um jeitinho de ir ao cinema de graça. Em minha cidade, o invisível e anônimo operador de cinema era meu tio, chamado de Ni¤o, como Billy the Kid, mas só disparava imagens. Por ser seu sobrinho, eu podia ver todos os filmes sem pagar: um desejo infantil tornado real (eu logo aprendi que quando se paga pelos filmes eles são mais apreciados). Mas nada do que seja sonho me é estranho, e o cinema, desde menino, se transformou em minha vida por outros meios. O lençol branco, uma mulher na cama, a música: tudo era maior, e melhor que a realidade. Fui o protagonista de "Cinema Paradiso" muito antes de seu autor nascer. (Havia também um lugar do cinema chamado paraíso, vulgo poleiro.)
Quando me tornei crítico de cinema em Havana, anos depois, disse a mim mesmo: "Bem, meu velho, chegou a sua hora. Você vai ver todas as estréias sem ter que passar pela bilheteria". E me transformei no que todo ni¤o (menos meu tio, o Ni¤o) quer ser quando crescer: o homem que vê todos os filmes de graça. É o que o logo da Metro anunciava, envolvendo uma fita de celulóide ao redor da juba de um leão, com o que parece ser o lema de um latin lover: "Ars Gratia Artis". Ou seja, a arte grátis. Mas isso é arte?
Em todo caso, para mim foi maná que emana do alto, embora não necessariamente do céu (ou talvez venha do céu do cinema coalhado de estrelas). O cinema encheu minha infância de sonhos de aventuras e de mistérios, minha adolescência de encontros eróticos. O cinema fez de mim um crítico de cinema, esse ofício do século 20. O cinema não só alimentou meu espírito, mas também meu corpo: deu-me de comer compondo crônicas, fazendo roteiros e, me ensinando a escrever, o cinema deu-me uma arma —a caneta que escreve como uma câmara. Mas é todavia hoje, depois de mais de meio século vendo filmes, que vejo mais cinema do que leio livros e a televisão e os vídeos me fizeram dono de uma coleção própria, a cinemateca de um só: Langlois, enfim.
O que seria de minha vida sem o cinema? Seria, como dizia o filósofo Hobbes da vida do homem, "solitária, pobre, obscena, bruta e breve". Mas essa vida é a do homem que nunca conheceu o cinema.

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