São Paulo, quinta-feira, 30 de março de 1995
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O modelo medieval

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO — A estrutura da cidade medieval era neoliberal e moderna. Havia, é certo, o direito divino, que se manifestava nos mais aptos e fortes. Donde os mais aptos e mais fortes eram, necessariamente, os mais ricos em terras e servos.
Se o cara nascia aleijado ou burro, era uma evidência de que Deus não queria nada com ele. Logo, podia ser desprezado e sacrificado. Há relatos oficiais que serviram de pesquisa para Manzoni descrever, em "I Promessi Sposi", a epidemia que se abateu sobre Milão ao tempo do cardeal Borromeo. As autoridades sanitárias faziam fogueiras bem longe do olfato da corte e nelas queimavam os empestiados. Era o mais prático e, de acordo com os recursos da época, o mais moderno.
Até que os economistas da corte levantaram os índices da situação e provaram que os camponeses, por ocasião de um novo inverno, nada poderiam produzir e seriam vítimas preferenciais da epidemia. A previsão dos técnicos era de que a peste, com o inevitável reforço dos camponeses ainda sadios, se prolongaria por mais um ano.
Houve um Conselho Geral promovido pelo príncipe. O equivalente ao presidente do Banco Central provou que haveria superávit com o fim da peste: mais dinheiro em caixa e menos gente para atrapalhar. O equivalente ao ministro da Justiça redigiu o edital que o Conselho Geral prontamente aprovou —pois aqueles que votaram a favor ganharam novas terras e privilégios.
O príncipe assinou o edital que os arautos logo divulgaram por toda a parte. Na primeira fogueira para queimar os cadáveres, foram jogados, ainda vivos, camponeses cujas terras, durante o degelo da primavera, haviam sido alagadas pelo rio Pó.
O fato de terem perdido as plantações era prova de que, além de ignorantes, improdutivos e fracos, os camponeses eram malquistos por Deus.
Até hoje Milão é o centro mais rico da moderna Itália que surgiu da união das muitas Cidades-Estado. Não foi à toa que lá nasceriam o fascismo de Mussolini e, agora, a Liga Lombarda, que cultua, com o mesmo assanhamento dos neoliberais que conhecemos, o lucro ao preço do sacrifício da carne humana —dos outros.

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