São Paulo, domingo, 2 de abril de 1995
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Reforma e contra-reforma

MARCELO LEITE

Segundo o "Novo Manual da Redação" (págs. 20-21), a Folha se propõe praticar um jornalismo crítico, moderno, pluralista e apartidário. Com a publicação do caderno especial Tempo de Reformas, na última segunda-feira, o jornal certamente foi moderno e apartidário, mas deixou a desejar nos tópicos crítica e pluralismo.
Para quem não leu, aqui vai uma breve explicação: Tempo de Reformas apresentou em suas oito páginas um panorama exaustivo e razoavelmente didático das modificações constitucionais pretendidas pelo governo FHC. O prato principal era uma abrangente pesquisa sobre o que pensam senadores e deputados acerca das polêmicas reformas.
De certo modo, foi como um brado no deserto. O apelo reformista lançado pelo jornal caiu no vazio deixado por sucessivos recuos do Planalto, nesse campo. É sintomático que apenas um dia depois de o jornal declarar aberta uma época ela tenha sido postergada indefinidamente por sua suposta vanguarda (o governo), com o adiamento da reforma da Previdência.

Moderno e apartidário
Foi um suplemento moderno, sem dúvida, na forma como no conteúdo.
Visualmente, destacou-se pela profusão de quadros-resumo sobre as propostas. Particularmente eficiente e útil, em matéria de informação rapidamente assimilável, foi o quadro "Veja a posição dos partidos sobre a reforma", que ocupava um terço da última página. O uso inteligente de cores cumpriu cabalmente a promessa do título, algo raro em jornalismo diário.
Um componente visual igualmente inovador foi a ilustração usada na capa, uma paródia de célebre pintura que retrata a Convenção Constitucional dos Estados Unidos. Alguns dos pais fundadores da nação norte-americana tiveram seus rostos substituídos por outros bem conhecidos dos brasileiros. Adivinhe no lugar de quem Fernando Henrique foi parar...
George Washington, claro. É um emblema acabado do espírito do caderno especial: mostrar que a reforma constitucional, sob a batuta do presidente de tantas luzes, é o passaporte brasileiro para a modernidade globalizante.
Por outro lado, foi inegável o caráter apartidário da iniciativa editorial.
A reforma constitucional interessa não só ao PSDB ou ao PFL, ela diz respeito ao país como um todo. Não é a primeira vez que a Folha adota teses institucionais avançadas -basta lembrar, na década em que construiu seu sucesso editorial, as diretas-já, a defesa de uma Assembléia Constituinte exclusiva e o parlamentarismo.
O problema todo, do ponto de vista jornalístico, são os limites desse engajamento. Ninguém desconhece que o jornal esposa a causa da reforma constitucional, inclusive as teses mais radicais sobre quebra de monopólios em petróleo e comunicações. O que nem sempre fica claro é o grau de contaminação do noticiário por posições políticas e ideológicas defendidas em editoriais.
É com referência a essa separação de princípio (reportagens/informações X editoriais/opiniões) que acredito ter o jornal faltado com seu compromisso público de ser crítico e pluralista.

Crítico e pluralista?
Tempo de Reformas só foi crítico quanto à inabilidade da equipe de FHC na condução da reforma junto a um Congresso sedento de vantagens fisiológicas e assanhado com a visão de um governo metido em uma sinuca cambial imprevista. Quanto à reforma proposta, em si, o caderno sinaliza uma adesão em bloco à proposta tucana. Como se ela fosse a melhor possível, ou a única.
Na crítica interna sobre a edição de segunda-feira, dei como exemplo o quadro "Monopólio", que ocupava uma das seis colunas da pág. 3. Era uma lista de dez argumentos a favor das alterações propostas -um verdadeiro editorial. Muito bem-feito, por sinal. Mas quem se dirigia ali ao leitor, a Folha ou o governo?
Para piorar a sensação de desconforto, o caderno descumpriu uma regra de ouro do "Novo Manual", a de sempre ouvir o outro lado. Ou seja, de ser pluralista. Os adversários da revisão constitucional, capitaneados pelo PT, simplesmente foram ignorados por Tempo de Reformas.
Segundo a secretária de Redação Eleonora de Lucena, a intenção do caderno era didática, apresentar a reforma tal como ela é -ou era- concebida pelo governo. Como se tratava de apresentar uma proposta, o "outro lado" teria ficado prejudicado pela ausência, de sua parte, de propostas alternativas concretas e de argumentos contrários objetivos.
Lucena afirma também que o jornal tem planos de editar outros cadernos sobre revisão constitucional, aí sim refletindo as divergências e polêmicas. O argumento, no entanto, é frágil. Não bastam intenções para justificar omissões da edição de hoje do jornal, mesmo porque as primeiras são inverificáveis.
Do jeito que saiu, Tempo de Reformas será tomado por muita gente como uma peça de propaganda do governo FHC. Quando chegar o tempo de debates, se chegar, a informação enviesada já terá produzido seus efeitos.

Como vender o peixe
De volta ao caderno: afora menções esparsas a resistências de parlamentares petistas, uma única reportagem abordava de passagem a questão. Um quadro grande (quatro colunas por quase meia página de altura) anunciava: "Lula coordena ação anti-reforma".
O texto não trazia nem mesmo uma declaração de Lula. Restringia-se a relacionar as reuniões que o presidente do PT deveria realizar durante a semana, para arrebanhar uma frente de contra-reforma. À guisa de "outro lado", havia só o sexto parágrafo:
"A bandeira que mais une as correntes de esquerda é a manutenção dos monopólios. Parte por uma visão nacionalista e parte, também, porque é nas corporações estatais que estão encastelados os sindicatos de trabalhadores sob a influência do PT."
É difícil deixar de reconhecer que há muito de verdade nessa afirmação. Mas é certo, por outro lado, que não seria essa a maneira com que Lula e "companheiros" venderiam seu peixe. Ou seja, trata-se de uma interpretação. Como tal, discutível por princípio.
Não que os petistas sejam grandes vendedores de peixe. No mesmo quadro, a foto de uma faixa de protesto escancarava o maniqueísmo com que se opõem à reforma: "Os bandidos querem -fim da Previdência; fim da estabilidade; fim da aposentadoria; fim das estatais; acabar com a nação".
É dose para leão. Mas não é muito diferente de alijar do debate essas correntes de opinião com recurso a rótulos simplificadores como corporativismo, atraso, nacionalismo, burrice, reacionarismo. Não faz muito tempo que os donos do poder silenciavam seus opositores com expedientes formalmente idênticos, qualificando-os como subversivos ou inimigos da pátria.
Se resistir a essas simplificações, dever negligenciado no caderno Tempo de Reformas, a Folha ajudará a dissolver o cimento ideológico com que o intelectual FHC vem tentando construir seu simulacro de demagogo à Collor.
Cabe ao jornal denunciar a falta de propostas do PT, como fez quarta-feira no editorial "No hay gobierno, soy contra", mas sem cassar-lhe a palavra e sem aderir ao nhenhenhém que põe a Razão e a História exclusivamente do lado dos vencedores. Mesmo porque as principais derrotas da reforma constitucional estão acontecendo no tapetão do Congresso e são infligidas ao governo por seus próprios aliados, não por um desacorçoado e patético PT.

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