São Paulo, domingo, 2 de abril de 1995
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Enfermeira conta como viveu dias de 'horror' '

ISNAR TELES
DA FOLHA VALE

Enfermeira conta como viveu dias de 'horror'
A enfermeira Aidê Aparecida de Souza, 35, disse ter visto o assassinato de um preso, uso de drogas e a tentativa de suicídio de um refém na rebelião dos 700 presos na Penitenciária de Tremembé (135 km a noroeste de São Paulo).
Ela relata, em entrevista exclusiva à Folha, na sexta-feira, os momentos que em ficou como refém dos rebelados.
Aidê fala em corrupção no presídio, tortura de presos, ameaças contra os reféns e do momento mais difícil da rebelião em sua opinião: a execução a sangue frio do preso Joaquim Marcelino dos Santos, 31.
A reportagem da Folha procurou o ex-diretor do presídio, Carlos Alberto Duarte, para comentar as acusações, mas ele não foi localizado. Duarte foi afastado do cargo na manhã de sexta-feira. A seguir trechos do depoimento.

"Foi uma experiência trágica. Um horror. Não sei bem como tudo começou. Lembro apenas do momento em que fui surpreendida por dois presos, quando deixava a enfermaria.
Os dois apontavam facas para mim e a todo momento diziam que eu não tinham outra alternativa. Fui levada para uma cela, onde já estavam presos os outros 11 funcionários do presídio.
Nessa hora eles já estavam fumando maconha e crack, e cheiravam cocaína. Eles passavam pelos corredores das celas usando as drogas. Essas drogas entram no presídio através das visitas. Todo mundo sabe disso, inclusive o diretor (afastado do cargo ontem).
Quando anoiteceu, ainda consegui ver presos tomando álcool puro e os medicamentos, como Neusine e Diasepan.
Uns presos tentaram me violentar, mas fui salva por um líder da rebelião, o preso José Jânio'.
No domingo, vi o preso Joaquim Marcelino ser morto a facadas, no corredor das celas. Todos usavam capuz e roupa preta. Ele ficou vários dias agonizando, sem ninguém poder ajudar. Só morreu quarta-feira. Aí que decidiram jogar o corpo no túnel. Essa hora eu não vou mais esquecer. Tive vontade de me matar.
Na terça-feira de madrugada, vieram me buscar para subir na torre. Os presos estavam muito agitados nessa hora e tinham uma faca que deixavam o tempo todo apontada para o meu pescoço. Fui com eles lá em cima e ficar na mira da faca, bem quieta.
Neste mesmo dia, eles falaram que ainda estavam cavando o túnel para fugir. Eles disseram que eu seria levada como refém.
Uma das cenas de horror foi a tentativa de suicídio do agente Clóvis Fernando Lemes.
Ele estava sendo ameaçado pelos presos. Ele entrou em pânico. Ele estava algemado na cadeira do dentista apenas por uma mão. Quando os presos saíram da sala ele pegou um bisturi e tentou cortar a veia jugular. Um dos presos ouviu o barulho e conseguiu impedir que ele se matasse. Fiz curativos em seu corte e tentei acalmá-lo.
Um preso injetou glicose na minha veia. Disse que eu tinha desmaiado. Eu sei que não existia mais seringas descartáveis. Fiquei apavorada. Vou fazer um exame anti-HIV. É horrível.
Quero deixar claro que não houve violência contra os reféns, além do cárcere privado. O diretor Carlos Duarte sabe que existe corrupção ali dentro e nunca fez nada. A rebelião não aconteceu por acaso. Alguns presos estavam sendo torturados quase todos os dias."

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