São Paulo, domingo, 2 de abril de 1995
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O Real, o navio e o balde

ALOIZIO MERCADANTE

O Plano Real foi lançado com a mesma pompa do Titanic. Um plano tão perfeito quanto infalível, imune as críticas e administrado por uma equipe totalmente auto-suficiente. No entanto, o Real não bateu em um iceberg, mas pode afundar pelo peso de sua própria âncora.
O suporte central do plano era o câmbio "fixo" e se desmanchou. O plano faz água e o que resta é pouco, ou seja, o esforço de promover uma "desaceleração" forçada da economia e manter taxas de juros elevadíssimas para adiar temporariamente a volta da inflação.
O governo já anuncia a intenção de impedir a reindexação dos salários, podendo voltar a intervir de forma autoritária no processo de negociação coletiva. A "desaceleração" deverá envolver medidas como o corte nos gastos públicos, retorno do Fundo Social de Emergência, restrição ainda maior ao crédito, ou seja, um limite estreito entre desaceleração ou recessão e com um custo social muito elevado.
A política econômica a partir de agora tem como única prioridade reverter os déficits crescentes do balanço comercial. Quando alertávamos para a irresponsabilidade da política de abertura acelerada da economia acompanhada do câmbio fixo, a equipe econômica comemorava o déficit comercial de novembro. Deslumbrados com a vitória de FHC e sem a ameaça do "efeito Lula", alardeavam o ingresso massivo de capitais externos no país após as eleições.
A situação do balanço de pagamentos é absolutamente preocupante. Um déficit na conta de serviços que pode se situar entre US$ 15 bilhões e 17 bilhões, acompanhado de uma fuga de capitais que só em 1995 já atinge US$ 7 bilhões e um déficit comercial acumulado em US$ 2,9 bilhões em fevereiro. As reservas disponíveis são inferiores a US$ 29 bilhões.
Uma situação de risco cambial a médio prazo se não houver uma significativa recuperação do saldo comercial. A restrição às importações de bens de consumo, com a elevação das alíquotas, não poderia ser evitada, mas é insuficiente para reverter a deterioração das relações comerciais.
Paralelamente, as forças neoliberais nos criticam por estarmos "utilizando" a crise do México e Argentina para "impedir" as privatizações. E, em certa medida, é verdade.
O colapso do México e a explosividade da crise da Argentina não revelam o fracasso do modelo nestes países? Não foram lições importantes para o Brasil rever a rota que estava sendo impulsionada pela equipe econômica, inclusive a política cambial? Será que o país deve vender suas empresas mais rentáveis e estratégicas para simplesmente fechar o balanço de pagamentos ou diminuir o rombo fiscal? Estas são perguntas fundamentais que precisamos debater?
Não adianta levar o debate para o campo ideológico de quem é contra ou a favor das privatizações. A discussão é outra. Privatizar para fazer o que? O carregamento das reservas cambiais e o giro da dívida mobiliária em 1995 exigirão o pagamento de juros superiores a US$ 24 bilhões. A privatização será o desdobramento desta política irresponsável de juros? E depois?
Não há saída fácil para a situação do país, mas definitivamente aprofundar o ajuste neoliberal não é saída. É melhor começarmos a construir uma política de rendas negociada que impeça a volta da inflação e a reindexação desordenada, ativando as câmaras setoriais.
Os acordos setoriais podem ajudar a controlar expectativas inflacionárias, além de contribuir para impulsionar a reforma tributária. Os acordos setoriais podem estimular programas de investimentos, introduzir os contratos coletivos de trabalho e constituir mecanismos de controle social sobre os preços.
A grande prioridade do Congresso Nacional deveria ser implantar uma reforma tributária em profundidade, que simplifique e racionalize a estrutura tributária e promova a justiça fiscal. E o primeiro passo é combater para valer a sonegação de impostos.
A racionalização da abertura comercial deve ser acompanhada de mecanismos de quarentena para o capital especulativo, como base de uma nova política de estabilização.
Mas, para discutirmos com franqueza as alternativas, o presidente precisa recuperar o equilíbrio e não rebaixar o debate político com a oposição. Já tem muita água no navio, quando mal começou a viagem, e será muito difícil continuar navegando com um único balde à mão.

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