São Paulo, domingo, 2 de abril de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Crise de paradigmas em Itaguahy

FERNANDO DE BARROS SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Mesmo assim, apreciando a coisa com um pouco mais de circunspecção, mudanças de paradigma deveriam em princípio implicar, entre outros arranjos, uma longa negociação cultural. Não parece ter sido este o caso de Giannotti. Posso estar enganado, mas atravessei a década de 70 e um pouco mais sem nunca tê-lo visto dar a mínima a Wittgenstein, primeiro, segundo ou coisa que o valha, salvo é claro as referências profissionais de praxe. Esse o longo período de elaboração de seu segundo grande livro, publicado finalmente em 83, "Trabalho e Reflexão". Nele tampouco qualquer alusão a Wittgenstein.
Muito menos no primeiro, "Origens da Dialética no Trabalho", de 1966. Evidentemente os títulos não foram dados ao acaso e sugerem mais de 20 anos de ruminação de um problema, o lugar do trabalho numa ontologia materialista do ser social.
Pois bem, sem o menor aviso prévio, deu-se então o disparate. Imagine o seguinte cenário: "Trabalho e Reflexão" já devia estar no prelo quando (abreviemos, para simplificar) uma alma caridosa achou que era chegado o momento de prestar um grande serviço ao desenvolvimento da cultura filosófica em nosso país, chamando a atenção do autor para o fato portentoso de que ele sem querer (aí a proeza) havia reinventado o segundo Wittgenstein, do qual aliás fazia muito tempo não se ocupava, embora não ignorasse em que direção vinha soprando o vento, mesmo nos domínios continentais tradicionalmente refratários à irradiação da filosofia anglo-americana.
Os mais inquisitoriais dirão que se o meu professor caiu em tentação é porque o ovo da serpente já estava no ninho. Já os adeptos da intuição e seus derivados dirão que se trata de um caso exemplar de visão de essência. Algum espírito escarninho, habituado aos azares da profissão, lembrará em favor de nosso personagem que não há Ulisses filosófico que desconfie e resista a um canto como esse. Seja como for, podemos conjeturar sem muito erro que o dito "paradigma da produção" deve ter envelhecido 30 anos numa noite.
Ocorre no entanto que a dose de artifício envolvido nessa virada fulminante é bem menor do que seria de presumir à primeira vista. Faça você mesmo uma experiência: ponha-se no lugar de Giannotti em 1982 (para dar uma data à visitação do tentador); reabra o livro (mas agora devidamente instruído pela boa alma que estamos imaginando) e releia as primeiras 50 ou 60 páginas (realmente impressionantes pelo esforço especulativo descomunal), dedicadas desde as primeiras linhas a tornar plausível a idéia cabeluda de abstração real, sem a qual a teoria de valor-trabalho não fica de pé, mas agora dando uma atenção maior aos exemplos, no geral curiosíssimos pela simplicidade demonstrativa.
Se não estou muito enganado, você reconhecerá no exemplo pitoresco (para citar apenas um) do indivíduo que arremessa uma bola contra a parede apanhando-a de volta, depois na direção de um parceiro que a devolve sem deixá-la cair no chão, um parente inesperado dos dois pedreiros que no início das "Investigações Filosóficas" de Wittgenstein trocam lajotas, vigas e algumas palavras. Você vai verificar em suma que os tais "esquemas operatórios" concebidos por Giannotti para expor a articulação entre ação social governada por regras e o sistema de objetos muito originais em que um se exprime pelo outro, se assemelham a um "jogo de linguagem" como um sobrinho a um tio.
Você haverá de convir então que não faltavam parentescos suficientemente estreitos para estimular o autor que se relia depois da entrevista fatídica a pensar com os seus botões: o processo de trabalho que analisei como um esquema operatório é na verdade um jogo de linguagem, só que não verbal. De sorte que o livro ainda não havia chegado às prateleiras e Giannotti já se considerava, de papel passado e tudo, um wittgensteiniano de nascença.
Folha - Não está muito brasileira esta crise de paradigmas?
Arantes - Ainda não. Mas em todo o caso, para que você não fique pensando mal, achando impatrioticamente que uma crise de paradigmas entre nós não tem estofo, não se apresenta forrada de mediações, peço-lhe um esforço suplementar de imaginação, a ver se atinamos com o que de fato se passou na cabeça de nosso filósofo.
Considere então o panorama: num extremo, uma ontologia fundamental centrada na noção de trabalho, no outro, a explosão final da lei do valor. O que fazer?
(continua)

Texto Anterior: Crise de paradigmas em Itaguahy
Próximo Texto: Crise de paradigmas em Itaguahy
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.