São Paulo, domingo, 2 de abril de 1995
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Crise de paradigmas em Itaguahy

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sentindo-se desobrigado pelo referido "big-bang", creio que Giannotti resolveu salvar pelo menos o capítulo inicial, calculando que no fundo seus "esquemas operatórios" poderiam sobreviver à falência da lei do valor.
Podemos então compreender a benção que foi a revelação verdadeiramente providencial de que era um wittgensteiniano da gema.
Sumariamente repertoriados, esses os principais peões da grande manobra: escrever um livro sobre Wittgenstein que fosse principalmente e ao mesmo tempo um grande "remake" do primeiro capítulo de "Trabalho e Reflexão", só que o lugar deixado vago pelo trabalho passará a ser ocupado por uma não menos abstrusa prática reflexionante da linguagem.
Folha - E se toda essa fantasia não for exata?
Arantes - Se o livro não for bem assim como estou imaginando, melhor deixá-lo de vez aos cuidados dos especialistas e ver no que dá tanta ontologia injetada na pragmática do segundo Wittgenstein, como há 30 anos atrás na crítica marxista da economia política. Pelo menos este último casamento foi um erro de pessoa produtivo.
Folha - Já que o senhor está tão otimista em relação aos acertos da sua imaginação, talvez valha a pena voltar ao fim de "Trabalho e Reflexão", onde, como já foi dito, a lei do valor, que dava a medida do capitalismo no período clássico, parece implodir, ao menos para Giannotti. Não é essa implosão que está na raiz da crítica à barbárie contemporânea, entendida como falta de medida, que Giannotti desenvolveu depois, ao escrever sobre a universidade?
Arantes - Como disse, a tal explosão ocorre lá para o fim do último livro, "Trabalho e Reflexão". Posso lhe garantir que este eu li, não sou sabido em tempo integral. Do que se trata? Segundo Giannotti, à ela se deve a "revolução dos nossos dias", curiosamente responsável pela "barbárie" muito camarada do pós-capitalismo, pois o distinto passou desta para a melhor levando a taxa média de lucro. A rigor uma crise sob encomenda, sob medida para os esquemas ontológicos do primeiro capítulo. Perde-se nas últimas páginas a "medida" não por acaso encontrada nas primeiras.
Aliás, quem perde sua real possibilidade de medida são os filhos e demais bastardos do capital e não o filósofo, que sai ileso do combate e, de quebra, de posse de uma tábua de salvação com que avaliar os acertos e desacertos da sociedade pós-industrial.
Folha - E daí? Quais as consequências disso?
Arantes - Vejamos tudo isto mais de perto, como costuma dizer o outro. Se você tiver apetite, estou certo que encontrará no referido primeiro capítulo e suas ramificações, uma das páginas mais impressionantes da literatura filosófica brasileira: num lance de grande audácia especulativa, Giannotti extrapola e converte uma analogia parcialmente estabelecida por Marx entre o processo social de medida do valor pela forma equivalente e o simples equilíbrio físico numa balança entre um pão-de-açúcar e um peso de ferro, na matriz de uma ontologia social regida por operações lógicas elementares de identificação, que por seu turno se expandem (não sem antes passar em revista tudo que nas ciências humanas tem a ver com identidade e diferença, de Saussure a Skinner) até reencontrar o famigerado trabalho abstrato socialmente necessário, padrão de medida do valor, uma ilusão necessária que por isso mesmo não existe como ponto de referência dado, uma vez que o processo de troca mercantil cria o seu próprio metro ao longo do caminho, como o Giannotti gosta de dizer.
Para encurtar, chamo a sua atenção para o embrião da futura encrenca, a simbiose entre a fonte da alienação (germinando na força de trabalho que só se torna coisa social reconhecida ao ser medida pelo trabalho morto que a compôs) e alguma coisa como um padrão objetivo de regulação social. Com isso, tudo se passa (na cabeça de Giannotti) como se a matriz mesma da sociabilidade capitalista retroagisse, por exemplo, até a "dádiva", medida reguladora da sociabilidade primitiva, o "tesouro", idem para a economia de "oikia, para em seguida avançar até o "fundo público", núcleo do futuro Welfare State, hoje mal das pernas. Só mesmo um ingrato se queixaria: vivíamos sob os imperativos da ilusão (chame fetichismo, se quiser), porém dispúnhamos de uma norma justificada, uma medida social realmente existente.
Ora, neste momento o mundo desaba, riscam o céu azul da boa alienação antiga os seguintes relâmpagos: transformação da ciência em força produtiva, além do mais direta e decisiva; monopolização do progresso técnico, que não se difunde mais como uma mancha de óleo; diferenciais irredutíveis, perpetuação dos lucros extraordinários e consequente implosão da taxa de lucro; segmentação do mercado de trabalho, incomensurabilidade entre os trabalhos necessariamente heterogêneos.
Sem maiores considerandos, a lei do valor vai para o espaço, deixando-nos num mundo de simulacros (eu ia acrescentar pós-moderno, como pedia o clichê "simulacro", mas me lembrei que o próprio Giannotti não faz muito caso dessas periodizações, pois recua o novo estado civil do logos prático até o paleomodernismo, batizando-o de "logos prático futurista"), num mundo de falsas medidas "ad hoc", em que se esfuma a distinção entre o fazer e o fazer-de-conta, o engenho e a manha, a arte e o artifício, para recorrer aos pares antitéticos de preferência de nosso autor.
(continua)

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