São Paulo, domingo, 2 de abril de 1995
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Crise de paradigmas em Itaguahy

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um quadro francamente disparatado: colapso ontológico do capitalismo, seguido de uma crise social das boas maneiras (ninguém mais é pontual, responde cartas, atende telefone...).
Resultado: corporativismo selvagem, briga de foice pelo quinhão de cada um nos fundos públicos etc., como aliás se pode infelizmente perceber até nos melhores grupos de excelência. Pelo estrago na etiqueta, dá para notar que a "barbárie" em cujo ritmo vivemos (ou praticamos, se penso no meu caso de professor universitário) não se segue ao naufrágio do socialismo, mas ao declínio da "civilização", cujo apogeu, ao que parece, transcorreu durante o capitalismo concorrencial, nos bons tempos das medidas efetivas.
Para você não pensar que estou simplificando além do necessário, me apresso em deixar claro que o Giannotti não mandou a lei do valor passear à maneira da ciência econômica convencional. Pelo contrário, sua visível ansiedade, ou melhor, exasperação, diante do que julga ser o mundo do faz-de-conta, se deve à percepção de que a crise eclode no momento em que a lei do valor deixa de funcionar, mas num certo sentido ainda está presente, pois ele sabe muito bem que o capitalismo não subsiste sem subverter sua própria base: gostaria de apelar para ela, mas não pode mais.
Numa palavra, meio aos trambolhões, esbarra na assim chamada (por vários teóricos alemães) "crise da sociedade do trabalho", mas ofuscado pela obsessão da medida, encarou o fenômeno de ponta-cabeça, o qual batizou de fetichismo do faz-de-conta e atribuiu ao monopólio da inovação tecnológica. Mas ao investir contra um moinho de vento, dará de cara com a linguagem e outra vez se enganará de fetiche. Veremos.
Folha - Para bom entendedor, o senhor está sugerindo que a leitura que Giannotti faz do "Capital" está equivocada e a crise do capitalismo, que como bom marxista o senhor não deixa de reconhecer, seria de outra ordem. Qual é, então, a crítica marxista possível ao cenário contemporâneo?
Arantes - Eu telefonaria para algum economista da velha guarda, de preferência amigo do Giannotti, e pediria uma opinião acerca desse desfecho. Imagino que você provavelmente ouviria coisas do seguinte teor: o Giannotti estava indo muito bem, pelo menos não se deixou levar na conversa do falso problema da "transformação" (do valor em preço de produção), tampouco se enredou, via Sraffa, na aporia neo-ricardiana do padrão invariante do valor, mas tanto insistiu (com razão) na questão da medida (do valor) que acabou deixando de lado o principal, a lei do movimento do capital (para falar em jargão daqui pra frente), cuja única finalidade é se autovalorizar, de sorte que a dita lei do valor (a menos que você a confine indevidamente no âmbito preliminar da sociedade mercantil simples de produtores independentes) só é plenamente tal ao comandar o processo de valorização do capital.
Feita esta ressalva, o caminho na direção da "crise" seria outro, a propósito da qual você está pedindo minha opinião: ver como o capital, à medida em que historicamente se aproxima de seu conceito, de sua forma mais geral e aparente, vai se afastando cada vez mais da sua origem, o valor-trabalho (como isto é puro Hegel, acho que o Giannotti concordaria com prazer).
Isto quer dizer, abreviando muito, que o tal ponto de chegada do processo de valorização do capital, o seu "conceito", vem a ser o capital na sua forma de valor abstrato, o dinheiro, que passa a comprar em consequência cada vez menos trabalho vivo e assim se afasta cada vez mais de sua origem, como lhe disse.
Está claro que a ulterior associação entre progresso técnico e oligopólio sanciona e agrava esta última negação, o que um outro colega meu exprime muito bem: depois de relembrar pela enésima vez (nunca é demais, sobretudo nesses tempos de inocência ou euforia schumpeteriana a respeito da legião exponencialmente crescente dos inimpregáveis e inexploráveis por motivo de novo paradigma tecnológico, blá, blá, blá) que o processo "automático" de valorização do capital só é o que é por ser ao mesmo tempo um processo de desvalorização do trabalho, acrescenta, justamente numa linguagem que o Giannotti deveria apreciar (você sabe que já formamos uma grande família), que um tal sistema de produção de mercadorias tende a aniquilar sua base de valorização, isto é, a desvalorizar sua própria "medida".
Sendo assim você há de convir que o amigo Giannotti deixou escapar o verdadeiro fetiche, o dinheiro (ele deveria ter observado melhor a configuração mais gritante da crise no seu início, na primeira metade dos 70), para acabar apesar de tudo hipostasiando de um lado o valor-trabalho como padrão de medida, de outro, o progresso técnico, que em si mesmo não explica coisíssima nenhuma da dinâmica do sistema, a menos que você queira mostrar, o que não era em absoluto o caso do nosso filósofo, que o desenvolvimento da técnica e o capital financeiro correm entrelaçados no atual impulso de destruição social, que a valorização do dinheiro pelo dinheiro é a imagem especular da marcha dita inexorável da inovação tecnológica rumo à esterilização total do trabalho produtivo.
O big-bang? Houve sim uma explosão, só que a lei do valor, bem compreendida, como acabo de lhe explicar, continua aí sim, e bem firme, a valorização do capital continua o seu caminho, dedicada a degradar no capricho o trabalho, a ponto de torná-lo definitivamente inútil. E mais, o Giannotti deveria ficar bem menos impressionado com o estilhaçamento que se espelha por exemplo na criação ininterrupta de valores excepcionais se se desse ao trabalho de verificar que a tendência à igualação da taxa média de lucro também se mantém, e como! Só que agora isto se dá na forma de capital financeiro em geral.
E se isto é fato, como penso, no que concerne outro fantasma dele, os trabalhos incomensuráveis que não são mais partes alíquotas da produção social, perceberíamos que o mesmo movimento do capital em escala internacional, que torna desiguais as condições de rentabilidade média do capital produtivo nas distintas regiões (não dá mais para pensar a concorrência capitalista em recinto fechado) se encarrega de unificar a taxa de lucro financeiro dos blocos de capital, de sorte que o bichão está aí funcionando a todo vapor no quadro da maldita lei, mas como ele é contraditório, essa fuga para a frente exige o estreitamento da base sobre a qual se apoia esse mesmíssimo processo de valorização.
Para concluir, quando Giannotti proclama que o capitalismo hoje perdeu a sua própria medida, não digo que não, até confirmo, acrescentando apenas o essencial, a saber, que sendo o dinheiro a forma unificadora do capital, nele se refugiou o único modo pelo qual "medir" o capital, sendo assim medida dele mesmo, daí a impossibilidade real de medida, dando razão ao nosso melhor filósofo no momento mesmo de nocauteá-lo, mas fetichismo é isso mesmo.
Pronto. Ou melhor, ainda não, acho que antes de desligar, esse veterano da crítica da economia política não resistiria à tentação de mandar o seguinte recado. Além das lembranças, diga ao Giannotti que ele tem toda razão, que hoje em dia a trabalhos iguais (por assim dizer) não correspondem salários iguais, que de fato a técnica oligopolizada não tende mais a homogeneizar o trabalho, tende pelo contrário a diferenciá-lo pela hierarquia (economicamente espúria, é claro), mas que, dito isto, ele não saia por aí a caçar corporativistas, sob pretexto de que são aproveitadores do "fetichismo do faz-de-conta", pensionistas do falido "paradigma da produção", desta vez não é a caça que é fetichista mas o caçador, que visa o alvo errado, o elo mais fraco do seguinte encadeamento: ao inutilizar cada vez mais trabalho vivo, o progresso técnico permite inundar o mercado com mercadorias "desvalorizadas", o que por sua vez torna necessário expandir alucinadamente os tais mercados e ao mesmo tempo, oligopolizá-los, para impedir que a mercadoria "desvalorizada" se torne enfim "livre" do valor de troca; pois a essa negação do valor-trabalho pelo lucro (que se exprime no preço politizado, cuja relação com o dito valor-trabalho é cada vez mais remota) se deve à multidão planetária dos improdutivos porém consumidores finais.
Onde então o faz-de-conta? No pobre diabo que finge fazer o que deveras faz (esse o milagre que às vezes parece colocar o além-capitalismo ao alcance da mão)? Ou no fetiche do dinheiro, que ao pôr sua marca no "preço" das mercadorias põe chumbo nas asas do valor de uso prestes a levantar vôo solitário a qualquer momento? Fim de recado sobre o tema: mudança de paradigma movida a fetichismo.

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