São Paulo, domingo, 2 de abril de 1995
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A edição vienense

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

A letra grande, inclinada para a direita, se estende por todo tipo de papel, mantendo o mesmo tamanho, idêntico o corte da caligrafia.
Wittgenstein usava lápis para apagar e refazer seus pensamentos. A caneta-tinteiro era a segunda opção. A tinta negra ou azul se sobrepõem. Alguns textos estão datilografados, com revisões a mão rodeando as margens.
A "Edição Vienense" (Wiener Ausgabe) está levantando lentamente o pano sobre os textos inéditos de Wittgenstein, cuja forma nítida foi descrita acima. Conservados no Arquivo Wittgenstein em Cambridge, eles começaram a ser publicados no fim de 1993 pela editora Springer, simultaneamente em Viena e Nova York.
O plano do organizador da edição, o filósofo austríaco Michael Nedo, é ambicioso. De início, pretende reunir em 15 volumes os escritos de 1929 a 1933, ao ritmo mínimo de dois por ano, em formato grande (21,5 cm por 33 cm), cada um tendo de 200 a 400 páginas, com fac-símiles, transcrições e notas ordenados por critérios de edição crítica informatizada.
Wittgenstein deixou 30.000 páginas não-impressas, manuscritas e datilografadas. "Para se ter uma idéia da importância e do volume dos escritos, basta dizer que apenas uma centena de páginas foi publicada sob supervisão de Wittgenstein", diz Nedo. "Ele criou sua filosofia na forma de anotações, parágrafos curtos separados entre si por linhas em branco."
Nedo arrisca afirmar que o entendimento atual da filosofia de Wittgenstein se baseia em textos editados esparsa e arbitrariamente.
Um exemplo: as "Investigações Filosóficas", concluídas em 1945, só vieram à luz dois anos depois da morte do seu autor, em 1953. Os textos restantes ficaram em poder dos inventariantes e discípulos do mestre, que trataram de reunir alguns fragmentos para publicá-los de tempos em tempos, como a explorar uma mina.
Cerca de 20% do total de escritos não publicados pelo filósofo saiu dessa maneira, fixada ao sabor do último escoliasta. O círculo dos inventariantes de Cambridge zelou pelo mistério. Criou, assim, uma espécie de veneração à palavra oculta. A quase-religião consegue hoje arrebanhar fiéis, que peregrinam anualmente à terra do pensador (leia texto abaixo).
A "Edição Vienense", publicada em alemão e inglês, deverá compor o primeiro corpus confiável e abrangente do pensamento de Wittgenstein.
Será preciso esperar uma década para se ter um relance do que o iceberg esconde. Contrariando o plano de Nedo, até agora saíram dois volumes, em quatro partes, "Anotações Filosóficas" (Philosophische Bemerkungen), e um com "Reflexões Filosóficas" (Philosophische Betrachtungen).
O que se seguirá poderá dar uma noção do processo de elaboração repetitiva do filósofo. As observações irão de 5 a 10 até o volume 4. Este também trará a primeira das três seções da "Gramática Filosófica" (Philosophische Grammatik), a ser completada no volume 5.
Os três tomos seguintes conterão as sinopses dos manuscritos anteriores. Os volumes 9, 10 e 11 encerrarão reelaborações sobre as sinopses já publicadas.
Por fim, os volumes 12 e 13 trarão o chamado "Grande Texto Datilografado" (The Big Typescript), uma espécie de copião que sintetiza todos os escritos que o precedem. Os últimos volumes serão dedicados às notas e referências bibliográficas.
Conforme afirma Nedo no volume introdutório, a marginália wittgensteiniana indica um sistema de pensamento que atua por reflexos e remissões em abismo. Uma idéia esboçada aqui pode receber uma sistematização completa adiante, e ser refutada bem depois. Nada impede, porém, que a idéia reapareça em formato primevo em um texto considerado oficial.
Assim, é possível encontrar nos primeiros volumes da "Edição Vienense" raciocínios elaborados sobre princípios da matemática, os passos iniciais que resultariam nas "Investigações Filosóficas" ou reflexões que iluminam o método.
Como esta, datada de 1929: "Ainda encontro meu caminho em filosofar com novidade, e fico tão entusiasmado com a novidade que preciso frequentemente me repetir. Para outra geração isso será parte de seu ser e as repetições parecerão tediosas; para mim são essenciais" (segunda parte das "Observações Filosóficas").
Desejava ver sua obra publicada e lida na espécie genuína de frações em progressão. Não via suas "Investigações Filosóficas" editada sem o "Tractatus". Numa das passagens manuscritas inéditas, de 1943, explica como queria expostos os pensamentos do "Tractatus": "Acho que deveria publicar os velhos pensamentos ao lado dos novos; o segundo deveria ser visto pela luz concreta, só por contraste com a base da minha antiga forma de pensar."
Segundo a "Edição Vienense", foi então que decidiu acrescentar uma nova epígrafe às "Investigações", em substituição à anterior, tirada dos "Princípios de Mecânica", de Hertz. Extraiu-a do livro "O Protegido" (Der Schtzling), de Johann Nestroy: "Geralmente, o progresso parece ser maior do que é".
Os manuscritos fornecem combustível para alterações mais radicais. Com base neles, o organizador da coleção sugere mudanças radicais em relação ao ordenamento dos textos já publicados.
Considera espúria a chamada "parte 2" que forma as 30 páginas finais do volume das "Investigações". Na realidade, ela integraria um texto posterior, elaborado entre 1947 e 1949, que receberia o título de "Observações sobre a Filosofia da Psicologia".
"Logo depois, começou a escrever uma série de manuscritos, em Viena e Cambridge", diz Nedo. "Foram seus últimos escritos. Esses textos, que conservam uma continuidade nos manuscritos, exceto pela estrutura das observações, figuraram até agora em duas coletâneas, 'Sobre a Certeza' e 'Observações sobre as Cores'. Os títulos foram dados pelos editores e os textos dos manuscritos foram selecionados a partir dos títulos".
Nedo sustenta que os textos pertencem a um corpo de questões diverso do das "Investigações". Enquanto estas se referem ao significado e aos jogos de linguagem, os últimos pensamentos do filósofo se voltaram à fundação da prova indutiva na matemática.
A "parte 2" se refere à filosofia da psicologia. Wittgenstein apresentava o texto a seus alunos como pré-requisito para o estudo das fundações da matemática.
Se for verdade, quatro gerações de filósofos derreteram os cérebros em vão sobre um texto que só tinha mistério por estar mal-organizado. Wittgenstein sempre lutou contra as idéias confusas. Mas o progresso engana e seus editores comungaram com o inimigo. A "Edição Vienense" quer dar vitória à nitidez.

A "Wiener Ausgabe custa cerca de US$ 100 o volume e pode ser solicitada à editora por reembolso postal (Springer-Verlag, Sachsenplatz, 4-6, P.O. Box 89 A-1201, Viena, Áustria; ou 175 Fifth Avenue, Nova York, NY, 10010, EUA; a Springer aceita todos os cartões de crédito

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