São Paulo, domingo, 2 de abril de 1995
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As obsessões lógicas de Giannotti

FERNANDO BARROS DA SILVA

Há autores que leio para ficar com raiva, como Heidegger, que pensou os problemas mais importantes através de categorias rarefeitas e abstratas
(continuação)

É bem verdade que atualmente estamos na fase de poucas idéias novas, que os trabalhos em filosofia e em ciências sociais se voltam para problemas mais restritos. Mas tudo tem seu tempo e seu ritmo. Estou convencido de que a nova geração se nutrirá desta serragem espalhada pelo solo para fazer dele nascer árvores frondosas.
Folha - A partir dos anos 70, suas preocupações filosóficas se desdobraram em vários ensaios mais conjunturais. Penso, por exemplo, nos textos sobre o papel da ciência no capitalismo contemporâneo e, mais adiante, nas duras críticas que o senhor fez ao "faz de conta" que havia se enfronhado no interior da vida universitária.
Giannotti - Vamos por partes. Estávamos belos e formosos instalados na Universidade quando o AI-5 botou uma parte do grupo para fora. Isto me obrigou, para minha felicidade, a trabalhar em dois níveis. Primeiramente, continuar alimentando minha obsessão pelos temas lógicos; depois, falar mais diretamente para um público, já que havia perdido o público cativo das salas de aula. Os ensaios em geral fazem parte dessa segunda versão. Quando veio a abertura e de novo comecei a ter contato com a universidade, fiquei impressionado com a devastação que o regime autoritário havia deixado. Não quero negar a enorme resistência daqueles que continuaram a labutar nas universidades, nem o valor de seus trabalhos, mas me pareceu inegável que o regime de trabalho tinha perdido o caráter propriamente universitário, aberto, expondo-se aos perigos de um debate menos regulado. É como se a universidade tivesse interiorizado a repressão.
Folha - Paralelamente aos ensaios mais conjunturais, é também constante sua preocupação em acompanhar o debate filosófico contemporâneo e dar o seu recado. Refiro-me, por exemplo, ao texto clássico "Contra Althusser" (1967), ao ensaio "Histórias sem Razão" (1979), sobre Michel Foucault, ou mesmo às farpas dirigidas a Juergen Habermas no meio do texto "A Universidade e a Crise" (1984).
Giannotti - Como já disse anteriormente, criticar a moda recebida sempre me pareceu, de um lado, tomar cautela contra formas de se pensar que passavam a ser empregadas automaticamente, sem uma visada para o real; de outro lado, tentar introduzir uma reflexão sobre meus próprios temas, de modo a mostrar que eles resistiam à transposição de uma linguagem para outra. Se cada moda filosófica está ligada a uma forma de vida, quando a linguagem é empregada fora do lugar, não é por isso que deixa de revelar aspectos de nosso próprio modo de viver. Vide tudo que tem escrito Roberto Schwarz. E para mim sempre foi um problema o que significa fazer filosofia num país periférico. No início, pensei que o importante seria participar do debate internacional, mas logo percebi que isto me obrigava a um "trottoir para o qual não tenho ânimo. E depois, o que me importa é falar para um público que tenha cara. A filosofia não se resume a uma trama de argumentos, mas é igualmente uma paixão. Ser filósofo ainda me parece consistir numa atividade de desarrumação. Sem este espanto e este entusiasmo, combinados com uma boa dose de ira contemplativa, não me parece haver filosofia.
Folha - A primeira coisa que salta aos olhos em "Trabalho e Reflexão" é o esforço descomunal de discutir e dar conta de tudo o que de mais importante pensaram as ciências humanas deste século, da antropologia à linguística, obviamente sem esquecer que o interlocutor privilegiado continuava sendo Marx. Que semelhanças há entre este projeto e a "Teoria da Ação Comunicativa", de Habermas?
Giannotti - Há certos autores que sempre leio para ficar com raiva. Heidegger é o primeiro. O desgraçado pensou os problemas mais importantes dessa época, mas sempre os colocando no campo rarefeito das categorias mais abstratas responsáveis pela travação do ser humano. Habermas igualmente resume o que se pensa no mundo moderno. Impossível não levá-lo em consideração, mas todo meu esforço foi direcionado no sentido inverso: ao invés de extrair as categorias mais abstratas pelas quais se pode pensar o que está acontecendo, tendo a mostrar que tais categorias já estão contaminadas, não apenas por interesses, mas igualmente por formas de práticas.
Folha - Como a crítica do capitalismo contemporâneo está constantemente em seu horizonte, um leitor ingênuo pode perguntar se isso é possível sem que se passe pela obra de Theodor Adorno. O senhor o ignora.
Giannotti - Veja, sem ser hegeliano, sem acreditar que tudo o que é real seja racional, vale dizer, lógico, não posso deixar de considerar que o pensamento antes de tudo tem a obrigação de pensar a si mesmo. Ora, toda a Escola de Frankfurt passa ao largo de tudo o que elaborou a Filosofia Analítica. Habermas é evidentemente a exceção, mas me parece que ele toma a pior parte dessas análises lógicas. O ponto de partida de sua "teoria da ação comunicativa" se baseia na tese de que uma proposição possui um conteúdo proposicional a ser asserido sem que tal asserção venha a interferir nesse conteúdo previamente significativo. Por várias razões que não convém levantar agora, esta tese, de origem fregeana, me parece insustentável. Os frankfurtianos me parecem ficar aquém das exigências lógicas que uma reflexão filosófica contemporânea deve cumprir.
Folha - Foram essas exigências que o levaram até Wittgenstein?
Giannotti - Wittgenstein serviu precisamente para repensar esta relação que as significações possuem com a práxis, como os sinais vêm a ser significativos por meio de seu uso. Além disso, desde "Trabalho e Reflexão", percebi que as categorias completam seu ciclo significativo na medida em que seus pressupostos são repostas pelo funcionamento delas. Nada mais surpreendente do que reencontrar este circuito nas análises wittgensteinianas do processo de julgar. Aí se encontra uma dialética cujos desdobramentos me parecem os mais promissores. Este é o núcleo do novo livro.
Folha - E agora? Há mais coisas no forno?
Giannotti - Saio cansado de tanta abstração. Pretendo reunir os ensaios que andei publicando aqui e ali, que de certo modo refletem como tentei aplicar esta mistura de Marx e Wittgenstein na análise de situações mais concretas. Mas estou reservando três ensaios sobre a moral para uma publicação à parte. Como não vejo ser possível que os comportamentos de hoje possam ser julgados corretos segundo um único padrão moral, trato de descrever os três pólos que imantam nossas condutas: a intimidade, a amizade e a moralidade pública.

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