São Paulo, segunda-feira, 3 de abril de 1995
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Telejornais mostram o mundo sem reflexão

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Diante da violência das guerras e preconceitos em outras partes do mundo, tendemos sempre a achar que o Brasil está excluído da onda de sectarismos que assola o planeta neste fim de milênio. A convicção de que temos o privilégio de pairar acima das mazelas do mundo resulta em um provincianismo disseminado na nossa imprensa.
As poucas notícias internacionais são tratadas com frágil teor analítico. Mas as imagens falam mais alto. Um rápido zapping pelos telejornais nacionais revela que o multiculturalismo está aí, pondo em xeque também o Brasil.
A guerra na Bósnia é bom exemplo da superficialidade dos telejornais. Cenas sangrentas de violência são repetidas e repetidas, de maneira que temos a sensação de estar vendo hoje as mesmas imagens de ontem. A guerra vira assunto rotineiro. É como se falassem de uma guerra a mais, em um paisinho distante.
Não sabemos muito bem por que, mas a cada acirramento de tensões, somos informados de novas vítimas e combates. Fica um pouco a sensação de que, embora passe na televisão toda noite, não temos nada a ver com o assunto. Ou talvez, diariamente, olhamos para aquilo e reafirmamos nossa índole pacífica. Afinal, às vezes esquecemos que, mesmo sem guerra civil ou êxodo em massa, temos outras situações extremas.
Se não se deixassem levar por uma sucessão infinita de acontecimentos transmitidos via satélite, os telejornais poderiam explorar melhor a força de suas imagens e discutir questões como: quais são as relações entre os violentos nacionalismos na Europa ocidental, a queda do comunismo, o enfraquecimento geral dos estados nacionais, a despolarização das relações internacionais? Como o sistema democrático, baseado nos ideais da liberdade e igualdade universais está posto em xeque pela reivindicação do direito à diferença de minorias étnicas, de cor, de gênero?
Como é que estas questões têm sido enfrentadas em um Brasil, que está diante -tal como os países do Leste- da falência do Estado interventor e de graves problemas sociais? Para não falar das discriminações raciais longamente ocultadas pela idéia de que a discriminação é meramente social.
Os telejornais mais aplicados -como o da Band- trazem multidões de africanos fugindo da guerra em Burundi. Nossa relação com o assunto aparece de maneira mais "civilizada", mas também está lá pelo menos na CNT. Dezenas de índios brasileiros se reuniram com a Anistia Internacional, que providencia um relatório sobre a violência praticada no Brasil contra "os povos da floresta". Por que não dizer, uma minoria étnica. E o encontro dos representantes indígenas, orgulhosos de suas feições específicas, com Pierre Sarré, o negro imponente que dirige a Anistia Internacional, é emblemático dos novos tempos.
São tempos em que a mídia contempla imagens e assuntos até há pouco inusitados. A onda multiculturalista virou moda até no mundo da moda. Basta lembrar recentes coleções étnicas de confecções brasileiras, inspiradas em lugares como o Egito. Ou, é claro, o apelo transnacional à tolerância racial da Benneton.
São tempos em que, rompendo o tradicional sentido norte-sul das relações internacionais, o "25ª Hora" homenageia a África do Sul, país onde a brasileira Igreja Universal já estabeleceu raízes. Em que a chamada do "Fantástico" de ontem anunciava que uma brasileira (sintomaticamente não sabemos de que cor) conquistou um bairro negro de Nova Iorque. As imagens esclarecem que o feito se deu através do ensino de uma dança afro-brasileira, a capoeira.
Material não falta. Somos sensibilizados diariamente por imagens contundentes, embora fragmentadas e descontextualizadas, dos mais diversos espetáculos político-culturais que fazem a cena contemporânea.
O que falta é reflexão. Curiosamente, no vácuo deixado pela decadência dos estados nacionais e pelo enfraquecimento das duas grandes potências, uma pluralidade de imagens disseminadas em todas as direções,representam um mundo em que a fragmentação étnica, religiosa e de gênero pode vir a ameaçar qualquer possibilidade de convívio dos diferentes. A experiência brasileira tem algo a acrescentar.

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