São Paulo, quarta-feira, de dezembro de
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Quaresma

ROBERTO CAMPOS

Pode ter sido a irritação de ver a instituição a que pertencem, o Congresso Nacional, atacada pelos "formadores de opinião" com o mesmo vandalismo reservado para telefones públicos e poltronas de cinema. Pode ter sido o ímpeto dos recém-eleitos de provar que não estão ali apenas para constar, pulando em cima do primeiro bocado que o Executivo distraidamente deixe cair da mesa. Pode ser o ambiente dessa ilha da fantasia plantada no meio do Planalto Central, um caríssimo centro de convenções onde tudo perde a realidade, para faz-de-conta de políticos e conforto da alta burocracia. Pode ser o fato de que a "entourage" partidária do presidente não tinha o hábito de descer do seu tranquilo muro para disputar a pelada bruta da arena do poder. Essas as explicações para as dificuldades do governo no Congresso.
No Natal passado, o caminho do país parecia claro. O povão votara naquilo que sempre quis: moeda estável e um programa de reformas para abrir os horizontes da economia e fazer o Estado cumprir as suas tarefas sociais na educação, na saúde, na segurança e no desenvolvimento da infra-estrutura. Votara sabendo que seriam necessários ainda sacrifícios e paciência, mas que havia luz no fim do túnel. Meros cem dias depois -aqueles famosos cem dias de Roosevelt, citação favorita de todos os assessores de assessores desta República- e em vez das linhas nítidas, separando os do lado de cá dos do lado de lá, parece, como na piada, que passamos a ver o túnel no fim da luz.
Desde a política de estabilização introduzida com o Real -que veio, aliás, muito mais tarde do que deveria ter sido feito- tenho apoiado a linha seguida pela "equipe econômica" do então ministro da Fazenda, reclamando apenas maior vigor nas reformas privatizantes. E continuei a fazê-lo depois que este se tornou presidente. Por quê? Extraordinárias afinidades eletivas goetheanas? Não. Em todo o caso, não necessariamente. O que está em causa não é a amável e culta pessoa de Fernando Henrique Cardoso, é um projeto para o Brasil. Não concordei sempre com as medidas tomadas. Certamente houve erros, sobretudo por inexperiência, e alguma ocasional presunção.
Mas aqui entra uma consideração que não me custa dizer com toda a simplicidade de alma. Erros ocorrem sempre em qualquer processo, e raramente se pode dizer, em matéria de política econômica, que só há um único caminho a ser seguido, com a exclusão de toda e qualquer possível variação.
O ponto essencial da vitória de FHC é que a grande maioria do povo brasileiro percebeu que estava na hora de parar de auto-engano, na hora da "glasnost" de Gorbatchov, que desmantelou de vez o totalitarismo socialista. Estava na hora de aumentar a eficiência da economia, cortar as falsas e insustentáveis promessas social-populistas de Papai Noel para todo mundo. E de reduzir um pouco os privilégios da casta corporativa, a "burguesia do Estado" -a verdadeira classe dominante, responsável pela exploração do homem pelo homem da forma mais burra e predatória imaginável em qualquer sociedade com pretensões ao auto-respeito. Foi o "Estado das Estatais" que nos levou à espantosa incapacidade de adaptação na complicada crise de 1973-82, que ampliou o endividamento externo e interno além de qualquer limite racional; que fez estagnar o país na "década perdida", levando os juros para a plataforma do absurdo, e comprimiu a parte dos salários no PIB a uma fração do que era há uma geração.
A uma boa parcela das esquerdas -que pelo seu conúbio espúrio com o nacional-corporativismo e o clientelismo tem pesadas culpas nesse cartório- neste tempo de Quaresma, poderíamos dizer: Perdoai-lhes, pois não sabem o que fazem.
Mas há outros de cuja inocência -não de cuja insciência- seria melhor desconfiar. Essa gente sabe, por natural instinto murino, que só tem uma chance de se reapresentar no palco do poder: o fracasso da política econômica do atual governo. Atacá-lo pela força, não tem como. Mas sabotando aqui e ali, podem torná-lo impotente, e abrir as comportas da frustração e da desesperança.
Não é uma tática nova. É das mais antigas e eficazes. Lênin valeu-se dela com notável competência -e para isso contou com a cumplicidade de um tolo e vaidoso social-democrata, que pensava entrar para a história como um grande homem. Kerensky. Acabou sendo o indireto responsável por 30 milhões a 50 milhões de vítimas, e pela desagregação do país. A história é cruel com os equivocados.
No Brasil, os nossos "transformadores do mundo" são bem mais práticos. Em vez de revolução, que pode machucar, preferem o conforto do estatismo bem pago, com adicional de periculosidade nos gabinetes de ar condicionado... Em números relativos, são poucos, e em condições normais, alguns jatos de ridículo bastariam para lavá-los da cena. Mas tendem a infeccionar o sistema imune do Estado. Num momento de perda de rumo do país, podem causar terríveis estragos.
Somos um país com poucas defesas internas. Achamos perfeitamente natural que se faça uma "greve de advertência" no porto de Santos, com prejuízos de muitos milhões de dólares, perda de empregos e de competitividade, às custas da economia do povo brasileiro. E engolimos sem pestanejar os "democráticos" ataques organizados a paus e pedras contra o presidente -coisa que em países civilizados, como a Inglaterra e a França, daria cadeia.
Nem sempre estaremos todos de acordo com a linha de FHC. É natural no processo democrático. Mas foi o programa aprovado nas urnas. Nos grandes traços, está de acordo com o consenso da competência técnica mundial. Um Estado enxuto e uma economia de mercado eficiente não são uma novidade deste governo. São a essência da racionalidade e a escolha invariável de todos os povos livres. Temos de aproveitar enquanto ainda nos resta tempo.

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