São Paulo, domingo, 16 de abril de 1995
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Rumo ao metaconstitucionalismo

DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO

Até recentemente tinha-se como assentado que a ordem jurídica interna de cada país era perfeitamente distinta e separada da ordem jurídica internacional e o único contato possível seria a recepção da norma externa pelo direito interno.
Essa concepção se ajustava a uma idéia de soberania idealizada que havia sido desenvolvida como um dos fundamentos do Estado-nação e seu primeiro teórico, Jean Bodin, no século 16, dava-lhe o sentido de capacidade jurídica para produzir um direito incontrastável, sem qualquer referência ao poder real de impô-lo.
Com o tempo, essa distinção se perdeu, até que o brutal exercício de poder entre as nações acabou por tornar imprestável o termo soberania, ao ponto de pensadores exponenciais, como Georges Burdeau, sugerirem seu abandono, passando a empregar a expressão independência, bem mais inteligível no universo das relações internacionais.
Outro eminente publicista da atualidade, Niccolo Matteucci, aponta dois novos fenômenos políticos contemporâneos como explicação para a crise do conceito de soberania: o pluralismo social e político, que devolveu do Estado à sociedade o centro de poder, e, não com menor importância, o contínuo e intenso processo de juridicização das relações internacionais, que acentuou a interdependência entre os estados.
Como o constitucionalismo moderno surgiu no século 18, explica-se porque o conceito de Constituição incorporou a idéia de soberania como imprescindível para a existência de um sistema de normas juridicamente incontrastáveis.
Nessas condições, a ordem jurídica que se foi formando na órbita internacional jamais foi considerada como supraconstitucional: a competência para a produção da norma de direito internacional seria sempre delegada, mesmo que que oriunda de organizações internacionais, que jamais foram reconhecidas como fonte jurídica autônoma, mas como meras agências coletivas delegatárias de poderes soberanos de seus respectivos Estados-membros.
Todas essas construções estão hoje em crise. A multiplicação dos blocos econômicos, que evoluem para formas de organização política minilaterais, vem produzindo uma nova variedade de norma legal que se impõe simultaneamente sobre os países associados e sobre seus nacionais, como se fosse um prolongamento, uma continuação da ordem jurídica interna de cada um deles.
À semelhança do que se reconhece ocorrer numa federação, em que a ordem jurídica federal é uma extensão da ordem jurídica dos entes federados, numa comunidade de nações independentes dá-se o surgimento de uma ordem jurídica comunitária, que não necessita ser recepcionada pelas ordens jurídicas internas.
Nesta perspectiva, que já se desenha claramente na experiência da comunidade Européia e se avizinha de nós, à medida em que avançamos o processo integratório do Mercosul, perde sentido mencionar-se uma "ordem supraconstitucional" ou a "redução da soberania".
São conceitos que vão ficando no passado, dando lugar ao metaconstitucionalismo, em que uma ordem jurídica se estende mais além das Constituições de cada Estado associado e, por decisão deles mesmos, se expressa como uma continuação compartilhada das respectivas ordens jurídicas internas.
Nesse extraordinário quadro, criativa realidade no velho mundo, o constitucionalismo, em vez de se enfraquecer e de perder importância, renova-se e fortalece-se, na medida em que ganha novos travejamentos principiológicos e novas dimensões, ultrapassando seus limites tradicionais para afirmar-se no espaço juspolítico mais amplo do metaconstitucionalismo.

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