São Paulo, domingo, 16 de abril de 1995
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Equilíbrio monetário internacional é tão complicado quanto à quadratura do círculo

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MÁRIO HENRIQUE SIMONSEN
Se há problema que a comunidade financeira internacional está longe de resolver é qual o regime ideal de taxas de câmbio. A proposta de criação de uma moeda internacional única, capaz de circular livremente por todo o mundo, além de obstáculos fundamentados no nacionalismo, é inviabilizada por duas dificuldades básicas: a) como se regularia a emissão dessa moeda única; b) quais as paridades iniciais de conversão das diferentes moedas nacionais na moeda internacional. Mais realista é o programa de criação de moedas regionais, cujo projeto mais avançado é o da Unidade Monetária Européia, aprovado pelo Tratado de Maastricht. Mas, apesar da relativa homogeneidade econômica da Europa, as datas de implantação do projeto vêm sendo adiadas sistematicamente. Os alemães não querem trocar seu poderoso marco alemão, sujeito à rigorosa disciplina do Bundesbank, por uma moeda emitida por um banco central europeu, com sede em Bruxelas, que talvez seja dominado pela burocracia francesa, a mais ativa da União Européia. Os ingleses temem substituir a venerável mas combalida libra esterlina por uma moeda sujeita à disciplina germânica. Franceses e italianos temem entrar para um sistema que representa a adoção de paridades cambiais fixas irrevogáveis, e assim por diante.
De fato, desde 1973 o mundo anda à busca de uma reordenação monetária internacional que parece tão complicada quanto a quadratura do círculo. O acordo de Bretton Woods, firmado em 1944, além de criar o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, consagrou o regime de taxas fixas de câmbio, colocando o ouro e o dólar no centro do sistema monetário mundial. Essa ordenação econômica era inspirada no padrão-ouro que, independentemente de qualquer acordo internacional, regulara satisfatoriamente o comércio e os fluxos de capitais entre as nações, do final do século 19 até 1914. O privilégio do dólar, réplica da predominância da libra esterlina até a Primeira Guerra Mundial, resultava de um compromisso que, em 1944, só os Estados Unidos ousaram assumir: o de garantir a conversibilidade do dólar em ouro entre bancos centrais à paridade fixa de US$ 35 por onça-troy (31,104 gramas) do metal. Isso significa que os demais países se comprometiam com taxas fixas de câmbio "ma non troppo". Elas poderiam ser modificadas diante de desequilíbrios estruturais de balanços de pagamentos, devidamente reconhecidos pelo FMI.
O colapso do sistema de Bretton Woods começou a desenhar-se em meados da década de 1960, quando os Estados Unidos começaram a emitir moeda para financiar os déficits públicos criados pelos programas sociais do governo Kennedy e, sobretudo, pela Guerra do Vietnã. Como o dólar era moeda internacional, isso era o mesmo que exportar inflação para todo o mundo. A sensação inicial foi uma euforia de liquidez, até que o presidente francês Charles de Gaulle chamou a atenção para o fato de que os norte-americanos estavam comprando o mundo com o papel-moeda que eles próprios emitiam. Com o aumento da liquidez internacional, uma metralhadora giratória começou a disparar ataques especulativos a diversas moedas. Enquanto isso, vários bancos centrais começaram a trocar suas reservas de dólares por ouro, à taxa US$ 35 por onça-troy. Até que, em 15 de agosto de 1971, o presidente Nixon suspendeu a conversibilidade do dólar em ouro, num calote histórico que rasgou a convenção de Bretton Woods.
O Smithsonian Agreement, firmado na época, tentou disfarçar o calote dos Estados Unidos com uma desvalorização de 10% do dólar em relação ao ouro, uma valorização da mesma ordem de outras moedas, além do congelamento dos preços do ouro, nas transações entre bancos centrais. A farsa não durou muito tempo, pois os Estados Unidos continuavam emitindo dólares para financiar seus déficits de balanço de pagamentos, exportando inflação para os países cujos bancos centrais aceitavam esses dólares, sendo por isso forçados a emitir papel-moeda.
A reação veio em abril de 1973, quando as autoridades monetárias da Europa e do Japão resolveram suspender a compra de dólares e, portanto, deixar a cotação da moeda norte-americana flutuar ao sabor do mercado. A essa altura não havia como disfarçar o colapso do regime de Bretton Woods. O dólar não mais era conversível em ouro e o preço do metal nos mercados livres, aos quais os bancos centrais não tinham acesso, era muitas vezes superior ao preço oficial. Além disso, as taxas de câmbio entre as principais moedas não eram fixas, mas flutuantes. A essa altura, para salvar o FMI e o Banco Mundial, não havia outra alternativa senão abolir o preço oficial do ouro e aceitar que, em matéria de regime cambial, cada país pudesse fazer o que bem entendesse. Esse anti-sistema foi oficializado na Reforma Monetária da Jamaica, em janeiro de 1976.
Assim, desde abril de 1973, os preços relativos das moedas emitidas pelas três maiores economias do mundo -o dólar norte-americano, o marco alemão e o iene japonês- flutuam ao sabor das forças de mercado, temperadas por eventuais intervenções dos bancos centrais. Inicialmente, o sistema parecia ajustar-se à tese desenvolvida no final da década de 1960 pelos monetaristas norte-americanos, liderados por Milton Friedman, segundo a qual o regime de taxas flexíveis, livremente determinadas pelos mercados, era preferível a qualquer ordem monetária internacional. Primeiro porque elas equilibrariam automaticamente o balanço de pagamentos de cada país, dispensando a acumulação de reservas externas pelos bancos centrais e a intervenção de entidades supranacionais como o FMI. Segundo porque cada país recuperaria plenamente a sua autonomia monetária, não precisando expandir nem contrair meios de pagamentos em função do saldo das contas externas. Terceiro porque o sistema dispensava a intervenção arbitrária do governo na fixação das taxas de câmbio. Os mais radicais nem perdoavam intervenções esporádicas dos bancos centrais nos mercados de câmbio, que, segundo eles, apenas gerariam um regime de flutuação suja ("dirty floating").
A utopia monetarista esquecia apenas um aspecto histórico relevante: as taxas flexíveis haviam sido experimentadas na década de 1920, sendo abandonadas por causa das suas oscilações erráticas provocadas pelas idas e vindas de capitais especulativos, e que só serviam para desnortear exportadores e importadores de bens e serviços. Essa mesma volatilidade se manifesta desde 1973. O dólar, após desvalorizar-se em relação ao marco alemão e o iene japonês durante quase toda a década de 1970, valorizou-se brutalmente durante o governo Reagan, por uma única razão: os Estados Unidos atraíam capitais estrangeiros porque pagavam taxas de juros mais altas do que as praticadas por outros países desenvolvidos. Até que em 1985, o secretário do Tesouro James Baker articulou a famosa reunião do G-5, no Hotel Plaza de Nova York, para coordenar a então apelidada aterrissagem suave da moeda norte-americana. Desde então, o valor do dólar em relação ao marco e ao iene caiu a menos da metade. É evidente que essa oscilação de taxas criou enormes prejuízos à economia internacional, deslocando indústrias de um lado para outro com enormes custos de transferência. A razão pela qual o sistema de taxas flutuantes persiste é que não há outra alternativa, na ausência de um consenso dos principais países quanto à ordem monetária.
No atual cenário mundial, três opções de política cambial se oferecem aos países em desenvolvimento: deixar sua moeda flutuar, atrelar-se a uma das principais moedas mundiais ou escolher um sistema híbrido.
A flutuação pura e simples é perigosa, dada a volatilidade dos capitais de curto prazo que voam como enxames de abelhas de um país para outro, e que costumam ingressar nos países em desenvolvimento sem grande conhecimento de causa, ao sabor dos modismos internacionais. Na primeira fase do Plano Real, o Banco Central tentou experimentar o sistema, numa época em que a oferta internacional de capitais para o Brasil parecia inesgotável. O resultado foi a queda do dólar de R$ 1,00 para R$ 0,83, e que só não foi maior porque a autoridade monetária interveio no mercado comprando moeda norte-americana. Em compensação, desde a crise do México, os capitais começaram a fugir do Brasil, e aí o Banco Central se apegou ao sistema de bandas, revistas na semana de 6 de março.
Com essa saída e com a acumulação dos déficits comerciais desde novembro do ano passado, nossas reservas caíram significativamente. Há esperanças de que, com o recente tarifaço de 70% sobre as importações de automóveis, eletrodomésticos e outros bens duráveis, as reservas se estabilizem. Mas, a definição da política cambial é um capítulo ainda a ser escrito no Plano Real.
Uma segunda opção é o regime de taxas fixas, atrelando a moeda nacional ao dólar (no caso dos países latino-americanos). Essa é a proposta da âncora cambial, em moda em muitos países em desenvolvimento. Há duas maneiras de implantar essa âncora.
A mais consistente é a que foi adotada na Argentina pelo Plano Cavallo. Ao fixar a taxa de câmbio, o Banco Central se compromete a só emitir moeda com 100% de lastro em reservas externas em dólares. Trata-se de uma versão moderna do padrão-ouro, onde a moeda norte-americana desempenha o papel reservado ao metal precioso no passado. Pormenores técnicos à parte, isso é a essência da lei de conversibilidade argentina. O sistema tem a vantagem de sujeitar os gastos públicos à disciplina de uma camisa-de-força, pois o Banco Central fica impedido de emitir moeda para financiar os déficits do governo. Também em princípio o sistema é capaz de resistir a qualquer ataque especulativo, pois enquanto existirem pesos em circulação haverá dólares para resgatá-los no caixa do Banco Central. Os riscos do sistema são os mesmos que levaram o mundo a abandonar o regime do padrão-ouro na década de 1930. Primeiro, se o país enfrentar déficits estruturais nas transações correntes externas, o principal instrumento para a sua correção -a desvalorização real da taxa de câmbio- só poderá ser acionado pela queda de salários nominais e de preços, de difícil operacionalização numa sociedade moderna. Segundo, se as reservas internacionais caírem, o que é difícil de evitar diante de déficits persistentes na conta corrente externa, o Banco Central terá que comprimir a oferta interna de moeda na mesma proporção. Isso exige que os bancos comerciais reduzam rapidamente os seus ativos, o que costuma ser inviável numa economia moderna em que os intermediários financeiros captam depósitos a prazo curto para financiar empréstimos a prazos bem mais longos. Isto posto, o sistema argentino, à semelhança do padrão-ouro, expõe-se ao risco de brutais crises de liquidez, diante das quais é politicamente difícil sustentar uma lei de conversibilidade. Essa é a atual vulnerabilidade da Argentina, não obstante os brilhantes esforços do ministro Domingo Cavallo para contorná-la.
Uma versão mais tosca da âncora é a que foi adotada pelo México no governo Salinas. O Banco Central fixa a taxa de câmbio, mas sem o respaldo de uma lei de conversibilidade. É o regime que o acordo de Bretton Woods estabeleceu para todos os países, à exceção dos Estados Unidos: taxas fixas até segunda ordem. Nesse regime, a âncora cambial funciona enquanto as reservas do país não se esgotarem. O que surpreende, na experiência mexicana, é que a lábia do presidente Salinas conseguiu, por vários anos, atrair capitais estrangeiros que financiavam o gigantesco déficit de transações correntes do país, da ordem de 8% de seu Produto Interno Bruto.
Os autores do Plano Real tiveram a sabedoria de nem submeter o Brasil à camisa-de-força do modelo argentino nem à leviandade da âncora oxidável do México. Só que ainda não definiram o que se deseja como modelo cambial brasileiro. A esse respeito valem algumas considerações.
A primeira é que o Plano Real foi um programa de estabilização de objetivos modestos. A precariedade do ajuste fiscal e a indexação anual dos salários pelo IPC-r nas datas-base deixaram explícito que o objetivo do governo não era transformar o real em moeda estável pelos padrões internacionais, que hoje não aceitam taxas de inflação superiores a 5% ao ano. Mas simplesmente livrar o Brasil da inflação psicodélica que nos assolava desde fins da década de 1980, voltando aos padrões do início da década de 1970. Tanto que nenhum arauto oficial prevê, para 1995, taxa de inflação inferior a 25%. A maioria dos consultores independentes localiza seus palpites na faixa dos 30% a 40%. Comparativamente a tudo o que o país experimentou desde o início da década de 1980, trata-se de enorme progresso que desmente a idéia de que o Plano Real foi simples estelionato eleitoral.
A segunda consideração é que, aceito o fato de que as taxas de inflação brasileira se manterão, pelo menos por uma temporada, acima das taxas de inflação dos países do Primeiro Mundo, a proposta de taxas de câmbio fixas, além de inviável, é ridícula. Esse é um problema que conhecemos desde o início da década de 1950. Em 1968, o Brasil adotou o regime de minidesvalorizações, que reajustava em intervalos curtos a cotação do dólar de acordo com os diferenciais da taxa da inflação interna e externa, com ajustes para mais ou para menos, conforme o desempenho do balanço de pagamentos. No princípio, as desvalorizações eram mensais. No final da década de 1980, passaram a ser diárias. O defeito desse regime é que ele sancionava passivamente o processo inflacionário. Em compensação, sem ele o país teria sido sufocado por sucessivas e intermináveis crises cambiais.
A equipe econômica tem toda razão em recusar a idéia da indexação cambial à moda do passado, não só porque a inflação passa a ser sinalizada pelo Banco Central, mas também pela dificuldade da escolha de indexadores apropriados. Afinal, não há razão plausível para desvalorizar externamente o real quando a inflação interna é impulsionada pelos reajustes de aluguéis e mensalidades escolares, que nada têm a ver com os custos dos produtos exportados (salvo quando esses reajustes se repassam aos salários). Só que, no reverso da medalha, pensar em âncora cambial quando a inflação interna é muito superior à externa não passa de total insensatez. Qualquer principiante em futurologia econômica é capaz de prever que um real não poderá valer mais do que um dólar por muito tempo.
Em resumo, continua a charada da política cambial. Há fortes razões para não atrelar a cotação do dólar ao nível interno de preços, mas também é impossível desconhecer que a estabilidade cambial não é sustentável com uma inflação interna muito superior à internacional. Também não se recomenda que o Banco Central lave as mãos como Pilatos, deixando a taxa flutuar ao sabor dos mercados, pois o resultado seriam oscilações selvagens, capazes de desnortear o que mais interessa ao país: os fluxos de comércio e de investimentos diretos, associados ao desenvolvimento do país a médio e longo prazos.
O sistema de bandas cambiais, pelo qual o Banco Central deixa que o mercado fixe o preço da moeda estrangeira dentro de determinados limites, provavelmente constitui a melhor solução para o problema, o que hoje é oficialmente reconhecido. O problema é a amplitude das bandas. Até agora o Banco Central tem optado pelas bandas estreitas, primeiro no intervalo informal de R$ 0,83 a R$ 0,86, e, no momento, na faixa de R$ 0,88 a R$ 0,93 por dólar. Por certo, o regime de bandas estreitas facilita as operações da mesa de câmbio. Só que bandas estreitas não têm longa vida num país com taxa de inflação de mais de 20% ao ano. Assim, a retórica oficial de que a banda atual deverá durar por "muito, muito tempo", fica sujeita às dúvidas naturais quanto à velocidade dos cronômetros governamentais. E é dispensável dizer que toda mudança dos limites da banda é traumática, a menos que se parta para um regime de bandas móveis que cheire a indexação. Nesse sentido, espera-se que as autoridades monetárias tenham aprendido a lição da trapalhada da semana de 6 de março. O que se sugere, para uma próxima etapa, é a adoção de bandas mais largas e, por isso, mais duráveis.

O engenheiro, economista e professor MÁRIO HENRIQUE SIMONSEN, 60, foi ministro da Fazenda (1974/79, durante o governo Geisel) e ministro do Planejamento (1979, no governo Figueiredo). Desde 1961, está ligado à Fundação Getúlio Vargas, do Rio, um centro de excelência no estudo de economia, que reúne tendências conservadoras, liberais e monetaristas.
Membro de conselhos de administração de diversas empresas brasileiras e, no Estados Unidos, do Citicorp, grupo que controla o Citibank, Simonsen formou reputação de economista de primeira linha no Brasil e no exterior. Seus textos acadêmicos costumam trazer uma equação por página. Para a imprensa, entretanto, produz artigos e ensaios conhecidos pela elegância e clareza.
Nas conferências que faz regularmente no Brasil e no exterior, Simonsen tem dado apoio ao Plano Real, embora criticando a condução do programa em diversos aspectos. Mas não critica no exterior. "Só falo mal do Brasil em português".

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