São Paulo, domingo, 16 de abril de 1995 |
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Obsessão
CAIO TÚLIO COSTA <PW:POPUP,2,0.5>ALMIR<UN-> O governo só pensa em cobrar mais impostos e ninguém tem de volta aquilo que paga: nem em obras públicas, nem em educação, nem em saúde.Caio Túlio Costa Tenho uma certa obsessão pela questão da enorme quantidade de impostos que se paga no Brasil e a eterna falta de retorno por parte do Estado. Numa noite de quinta-feira, num delírio de febre por causa desta gripe chata que assola gargantas e corpos em São Paulo, sonhei com um escritor americano que em 1848 -olhe lá, faz quase cento e cinquenta anos!-, inventou de se recusar a pagar imposto em protesto contra a escravatura e a guerra EUA x México. O escritor, Henry David Thoreau, passou uma noite inteira na prisão por causa deste gesto ousado. Explicou a coisa num ensaio célebre, "Desobediência Civil". Neste texto, conclama os indivíduos à resistência concreta quando os governos cometem injustiças. Para ele, votar não é o suficiente, é preciso ir além. Thoreau criou a desobediência civil, a individual. Quase um século depois, Gandhi, na Índia, desenvolveu a desobediência civil coletiva, aquela da não-violência, uma outra história. No meu sonho, Thoreau conversava com o presidente Abraham Lincoln uma conversa impossível. Ambos foram contemporâneos e até tinham um semblante muito parecido. A mesma barba recortada, a ausência de bigode, entradas semelhantes no reparte do cabelo no lado direito da cabeça. No olhar deles se nota, e você pode conferir pelos retratos, total impenetrabilidade em Lincoln e certa pureza em Thoreau. Não foi à toa que o primeiro virou estadista assassinado e o outro morreu escritor. Ambos dialogavam amigavelmente. Pareciam estar no gabinete presidencial, mas podia ser uma ante-sala de teatro. O local não importa, o diálogo é que era muito atual e tinha a ver com o nosso Brasil de hoje. Thoreau falava com certa bonomia, aparentemente cansado de dar explicações: -Bem, Abraham, minha resistência é individual. Não me importo se a copiam. Ao contrário, escrevi o libelo para isso. -Henry, trata-se de um acabado mau exemplo. Olhe bem o que está acontecendo lá no Brasil. Os homens estão levando ao pé da letra suas idéias e uma quantidade enorme de gente sonega imposto de maneira deslavada. -Que eu saiba, Abraham, sonegam sim, mas nem todos, infelizmente. Só os que ganham muito dinheiro. Quem vive de salário em carteira assinada não consegue sonegar não. -Pois é. Desobediência civil levada a cabo por gente muito importante. -Mas o governo só pensa em cobrar mais impostos, ninguém consegue ter de volta aquilo que paga -nem em obras públicas, nem em educação, nem em saúde... O esperto sonega mesmo. O governo sabe muito bem o que acontece. -Sonega porque você deu o mau exemplo! Pega mal para nossa imagem. -Descanse, Abraham. Para desgraça das minhas teorias tem um intelectual lá, um sujeito pensante como eu, que assumiu a presidência. -Eu sei, Henry. Por isso mesmo. Desconfio muito de intelectual no poder. Você gostaria de tocar o Ministério da Justiça, por exemplo? Não é um convite, apenas curiosidade... -Nunca! Intelectual só serve para pensar, refletir, iluminar, ensinar, Abraham. Político é para governar. -Então você acha que este moço, um sociólogo erguido à política, alguém mais acostumado aos debates do que às ações, será ele capaz de resolver a coisa? Foi aí que Thoreau se levantou da poltrona como que iluminado: -Então não tem jeito mesmo e a minha desobediência civil está salva. Encontrou seu lar! Caio Túlio Costa é Diretor de Revistas da Folha. Ilustração: Foto de David Byrne, "O Museu Secreto do Gênero Humano", parte do trabalho intitulado "A Soma do Conhecimento do Mundo". Texto Anterior: Vitória da sujeira Próximo Texto: A volta dos bons tempos de bistrô Índice |
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