São Paulo, quarta-feira, 19 de abril de 1995
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Godard pinta auto-retrato em 'JLG/JLG'

CARLOS DIEGUES
ESPECIAL PARA A FOLHA

O último filme de Godard, embora não fizesse parte da programação oficial das festas do centenário do cinema, acabou estreando, de propósito ou não, na semana anterior à das comemorações, numa pequena sala de Montparnasse, o La Pagode.
Na verdade, a Gaumont lhe havia encomendado o filme, de mais ou menos uma hora, para a televisão e com a finalidade de comemorar seu próprio aniversário (dela, Gaumont).
Godard deu ao filme o título de "JLG/JLG" (que podemos decodificar como "Jean-Luc Godard visto por Jean-Luc Godard"), com o subtítulo "Auto-Portrait en Décembre" (Auto-retrato em Dezembro), bem à moda dos pintores que ele gosta e, cada vez mais, busca reinterpretar em seu trabalho.
É ele mesmo quem diz, dando uma pista nos dois sentidos, que, quando os pintores renascentistas não tinham mais o que pintar, pintavam a si mesmos.
O filme começa num tom deprimido e outonal. Melhor dizendo, num tom mais para o hibernal, dominado pelas águas agitadas do lago, pela neve que cobre a paisagem branca e não pára de cair.
Em sua casa de poucos móveis e muitos livros, uma televisão passando trechos de algum clássico, Godard, despenteado, barba por fazer, mal vestido sob longo capotão escuro, sempre à sombra, de costas ou no máximo três-quartos para a câmera, lê trechos de seus autores prediletos, desenha signos do que diz, faz declarações pessimistas sobre o cinema.
Ao fundo, pedaços de músicas, diálogos inteiros de filmes como "Johnny Guitar", de Nicholas Ray ("Diga-me alguma coisa de agradável" etc., o longo e romântico diálogo entre Joan Crawford e Sterling Hayden).
Poucos dias antes, eu havia assistido a uma entrevista sua, em que dizia literalmente que "foi a televisão quem matou (Henri) Langlois, François (Truffaut) e Romy (Schneider), só para depois dizer coisas bonitas sobre eles".
Mas a enorme tristeza do início de "JLG/JLG", não tem nada a ver com esse ressentimento em relação a alguma coisa que já lhe fez ou ainda pode vir a lhe fazer mal. Essa tristeza parece mais um radical despudor, em relação a si mesmo e à situação da arte no mundo.
Mas, de repente, ouve-se a voz da diarista que, depois de cuidar da casa, pede ao patrão que conte uma história para sua filha pequena, qualquer história.
E ele, sentado à beira da cama, nos conta a inacreditável anedota da família de tubarões que assiste a um naufrágio, enquanto o pai-tubarão adverte a seus filhos: "Lembrem-se, meninos, as crianças e as mulheres primeiro".
A partir desse momento, o filme envereda por trilhas inesperadas de humor e lirismo, uma sucessão de "gags" e "quadros" em ritmo de reflexão, que detona questões sobre... quase tudo.
Até terminar num descontraído jogo de tênis. É como se Godard tivesse voltado à "Cahiers du Cinéma", ao estado de espírito de quando era um de seus mais polêmicos colaboradores, mas, tendo acumulado enorme experiência de cinema, agora sim, se prepara para fazer "Acossado".
Tudo isso sustentado por luz e enquadramentos de uma originalidade esquecida no cinema contemporâneo. Godard sabe quais são os planos óbvios que descrevem essa sala ou aquele quarto, mas escolhe filmar as interseções entre esses planos -cineasta dos limites, filma o limite entre essas imagens.
Sua encenação aspira à imobilidade na organização das imagens em movimento, como se ele estivesse fazendo o caminho inverso, em busca da pintura no cinema. Ou do cinema de pintor.
Num dos mais luminosos momentos do filme, ele nos diz que "a cultura é a regra, a arte é a exceção -e é da natureza da regra tentar destruir a exceção". Talvez nem ele mesmo tenha consciência do tanto que sua exceção, desde "Acossado", resiste à regra.
Conforme vai chegando a seu final, "JLG/JLG" se torna cada vez mais um "auto-retrato em dezembro", ou seja, um auto-retrato datado, com a esperança de que, no próximo, não terá que ser necessariamente desse jeito.
Os invernos não duram o ano todo, como Godard parece nos dizer, quase no fim do filme, citando um poeta que não consegui identificar: "Se existir alguma verdade nos lábios dos poetas, eu sobreviverei".

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