São Paulo, quarta-feira, 19 de abril de 1995
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'Sábado' retrata realidade antiapocalíptica

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Assistir a filmes nacionais está ficando cada vez mais interessante e divertido. "Sábado", de Ugo Giorgetti, merece tanto sucesso de público quanto "Carlota Joaquina" -e é, a meu ver, bem mais engraçado.
Seu ponto de partida é dos mais simples: uma equipe de publicidade vai fazer um anúncio de perfume num prédio deteriorado no centro de São Paulo. A diretora de arte da agência de publicidade fica presa no elevador, junto com dois funcionários do Instituto Médico Legal, um defunto e um morador do edifício. As tentativas de consertar o elevador e o confronto da equipe de filmagem com os moradores daquele cortiço vertical são, basicamente, todo o assunto do filme.
À primeira vista, temos uma parábola bastante trivial: o falso "Primeiro Mundo" dos Jardins e de propaganda encontra a realidade do lumpesinato urbano num prédio em decadência.
Tudo pareceria pronto para suscitar os defeitos típicos do cinema brasileiro de alguns anos atrás: a alegoria forçada, o diálogo cretino, a escatologia, a falta de inventividade no roteiro, o "genialismo" do diretor.
Mas é como se Giorgetti estivesse vacinado contra essa tentação: as situações teriam tudo para cair na grosseria, mas isso não acontece. A cafonice, a vulgaridade, a feiúra estão forçosamente presentes -mas sob controle.
Cria-se uma tensão extremamente bem dosada entre o que aparece na tela e as expectativas de quem vê o filme. Estamos sempre esperando o momento em que tudo vai descambar de vez. Só que não descamba.
O interessante é que essa tensão, que ocupa o espectador, também ocupa os personagens burgueses da história. A diretora de arte Magda Bloom (Maria Padilha) está presa no elevador com três sujeitos medonhos (desempenhos brilhantes de Otavio Augusto, Tom Zé e André Abujamra) e um defunto que logo vai apodrecer. Mas nada de catastrófico acontece no elevador.
Enquanto isso, a equipe de publicidade trata de ir filmando o anúncio de perfume. Parece uma tarefa impossível. Os moradores se revoltam, a confusão é enorme, estamos a um passo do caos completo. Mas...
Não preciso contar o resto. Observo apenas que o filme está às voltas com um duplo perigo, uma dupla ameaça. O espectador burguês, do mesmo modo que os personagens burgueses da história, torce para que as coisas não fujam totalmente de controle -e tudo leva a crer que isso acontecerá.
É bem a experiência que temos no cotidiano brasileiro. A desigualdade e as tensões sociais estão aí -mas o apocalipse não ocorre. "Sábado" é um filme antiapocalíptico, e nesse sentido se ajusta com grande precisão ao momento brasileiro.
Não é só na estrutura geral, na concepção básica do filme, que encontramos esse ajuste. Cada cena, cada diálogo, cada trejeito dos atores parecem acertar no alvo. Chama a atenção, particularmente, o retrato feito por Giorgetti de alguns estilos de dominação e de autoritarismo tipicamente brasileiros.
Trata-se, por assim dizer, de um autoritarismo da intimidade. O funcionário do IML dá ordens para um morador idiotado do edifício. Não tem procuração para mandar -mas manda, mesmo assim. A ameaça vem disfarçada de cumplicidade. "Você tem de fazer isto, senão vai dar problema para nós dois..."
O assistente de direção, na filmagem do anúncio, manda e desmanda, mas sempre com um sorriso de simpatia hipócrita no rosto. Quem exerce a autoridade parece sempre estar, por sua vez, subordinado a alguém ou a alguma coisa que não conhece direito, a alguma regra obscura, a algum código não-escrito. A informalidade no trato entre as pessoas mostra aqui seu lado perverso. Não se diz "obedeça!", e sim: "Ô amigão, vamos dar uma colaborada aí..."
Uma mistura de subserviência e mando, de aliciamento pessoal e de descompromisso, de cinismo e simpatia move muitos dos personagens do filme. "Sábado" se torna muito engraçado pela notável precisão com que os atores encarnam esse estilo brasileiro de relacionamento.
Cafajestismo e frescura, embrutecimento e malandragem, falsa simpatia e simpatia autêntica, melancolia e acessos histéricos passam diante de nossos olhos num esplêndido realismo de atuação, de inflexões de voz, de sotaques e de gestos. Cada ator, neste filme, é de uma cara-de-pau absolutamente milagrosa.
"Sábado" apresenta, no detalhe de cada atuação, e nessa concepção geral, um retrato preciso das tensões sociais e de estilos de dominação presentes na vida brasileira. Mas, se esse retrato é de uma extrema nitidez, e se seu tema antiapocalíptico está ajustado a tudo o que conhecemos do país, mesmo assim talvez exista um ponto cego no filme.
A diretora de arte Magda Bloom, com todos os seus fricotes, com todo o horror que sente ao entrar naquele cortiço, é objeto de ironia, diz uma série de besteiras, típicas da classe alta, a respeito da "mentalidade" e da "falta de educação" da classe baixa. A classe baixa não é tratada com mais complacência: idiotiza-se diante da filmagem do anúncio, e "Sábado" não a isenta de ridículos equivalentes aos dos burgueses que critica.
O foco se alterna, assim, durante todo o tempo: o prédio onde se passa a história é de fato mostrado como sendo horroroso; mas o filme também parece dizer que é ridículo achá-lo horroroso. O centro de São Paulo está degradado: esta frase verdadeira e banal é às vezes levada a sério, às vezes é denunciada em sua banalidade.
O preço que "Sábado" paga pela exatidão crítica seria o de esquivar-se sempre de ter um ponto de vista; ou melhor, adota vários, mostra tudo, mas para isso não pode fixar-se em nenhum lugar. Seu brilho, seu humor têm algo da proeza de um ventríloquo. É, por assim dizer, uma dublagem da realidade, feita com espantoso virtuosismo; tão próxima do original que parece o tempo todo querer fugir de lá. Isto é, daqui.

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