São Paulo, quinta-feira, 20 de abril de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Tio Dave calça sapatos com cacos de vidro

DAVID DREW ZINGG
EM SÃO PAULO

Hoje é um dia raro em Sambalândia. É um dia ensolarado, mas fresquinho, enviado a nós por alguém lá em cima que gosta da gente, para fazer com que nos sintamos como cachorrinhos cheios de disposição para brincar.
Meu herói, David Barry, disse, referindo-se a um dia como este, que ele faz você sentir vontade de tirar a roupa e ficar rolando no capim alto, como um cachorro.
Faria -se não fosse por duas coisas.
1) No tempo que você levou para ler estas linhas, a avenida Paulista provavelmente já estará fechada ao trânsito devido à grossa camada de neve.
2) Alguma coisa mordeu meu pé esquerdo, arrancando um pedaço, e essa coisa se chama gota.
Como você talvez saiba, costumo frequentar o mundo dos líquidos em São Paulo. Isso significa que, se você quiser falar comigo, não ligue para minha casa. Comece por minha lista de cem bares e você acabará me encontrando.
Naturalmente, eu dedico metade do tempo que passo acordado realizando pesquisas científicas para minha coluna de bares, que sai aos domingos na Revista da Folha.
A outra metade dos meus períodos de semilucidez aplico à ciência de extinção de ressacas, para poder beber outra vez, é claro.
Mas sinto um orgulho perverso de minha nova amiga, a gota. Quando se tem este mal respeitável, que costuma ser a marca registrada de lordes ingleses podres de ricos, sabe-se que se chegou ao lugar certo. A maioria dos bebedores inveterados de venenos como a cachaça acabam no manicômio ou pedindo esmolas na rua.
Nós, sofredores de gota, somos uma raça à parte. Tranquilizamos nossas angústias com coisas mais nobres. Apenas o melhor dos uísques do mais puro malte escocês servem para nos acalmar, ou então vinho do Porto.
"O vinho do Porto", disse Evelyn Waugh em seu livro erudito "Wine in Peace and War" (O Vinho em Tempos de Guerra e Paz), embora seja essencial à digestão dos alimentos, "pode ser ligeiramente deletério. Seu encanto constitui um insidioso convite ao excesso, e o excesso de vinho do Porto, apesar de nocivo por si só, às vezes traz à tona debilidades latentes".
Amém. Suponho que ele queira dizer debilidades latentes como gota.
Waugh prossegue dizendo: "O bebedor contumaz de vinho do Porto precisa estar preparado para sacrificar algo de sua beleza e agilidade pessoais".
Devo dizer que ainda não comecei a apresentar a marca registrada do estereótipo do bebedor de vinho do Porto, ou seja, o nariz inchado, vermelho, com formato de batata. No meu caso, é o "sacrifício da agilidade" que é, literalmente, um pé no... pé.
O charme da gota é que ela faz você sentir que está andando com sapatos cujas palmilhas foram removidas por seu pior inimigo e substituídas por minúsculos fragmentos de vidro quebrado.
A título de consolo, Waugh afirma que, segundo testemunhos universais, os ataques mais agudos de gota são precedidos por um período de lucidez mental peculiar.
É uma boa notícia. Acho que o ataque que sofri não foi tão grave assim, afinal.
Hollywood especial
Você conhece Hollywood. É aquele lugar onde os diretores de cinema são tão convencidos que ficam sentados em cadeiras reclináveis de diretor de cinema.
É aquele lugar onde uma jovem estrela lindíssima se aproxima de um produtor e pergunta: "Se eu fosse um gênio e pudesse te conceder três desejos, quais seriam os outros dois?"
Bem, para aqueles que gostam do cinema tanto quanto um viciado de drogas, aqui vai meu conselho: corram até a banca mais próxima e tentem comprar um exemplar da edição especial Hollywood da "Vanity Fair".
Talvez seja boa idéia levar alguém junto para te ajudar a carregar a revista para casa -ela tem 330 páginas de caríssimas fofocas e um brilhante portfolio de 150 astros e criadores de astros clicados por Annie Leibovitz e Herb Ritts.
Graydon Carter é o editor desta engraçada e irreverente viagem pela terra dos sonhos. Como diz o editor, "o cinema foi inventado cem anos atrás. E 99 anos atrás as pessoas já começaram a queixar-se de que o cinema já não era tão bom quanto antigamente".
Na verdade, "Vanity Fair" não passa de uma versão sofisticada de "Notícias Populares" dedicada aos famosos. E é mais maldosa do que "Notícias Populares".
Para os estudiosos sérios do estilo cinematográfico de Hollywood, a parte mais valiosa desta edição especial da "Vanity Fair" são os retratos fotográficos feitos por Annie Leibovitz e Herb Ritts.
Praticamente todo mundo está ali. O portfolio abre com um tríptico histórico de Arnold Schwarzenegger, Tom Cruise e Tom Hanks, intitulado de "Os Três Reis Magos". A foto é de Herb Ritts, o fotógrafo da casa favorito de Hollywood. Quando você olha para ela, você vê o poder do cinema, nu e cru. Se Arnaldo Jabor fosse louco o suficiente para querer dirigir os três juntos num filme chamado "Eu Sei que Você me Odeia", teria que pagar US$ 15 milhões antecipados para cada um.
A lista de retratos de grandes astros se estende, mas a foto que chamou minha atenção foi a de um grupo de 27 diretores, reunidos no mundo inteiro, não se sabe como, pela milagreira Annie Leibovitz.
Leibovitz pede e recebe entre US$ 25 mil e US$ 50 mil por um único retrato. Posso te garantir que conseguir que duas pessoas importantes saiam bem num retrato duplo é como arrancar um dente.
Mas quando se trata de conseguir que 27 prima-donas do grande cinema se reúnam sem se atacar umas às outras é um pequeno milagre. Leibovitz deve ter despejado Ecstasy na água dos cineastas.
Só para te dar um gostinho do drama, veja só quem estava presente: Quentin Tarantino, Oliver Stone, Billy Wilder, Warren Beatty, Wolfgang Petersen, Tim Burton e Robert Zemeckis.
Se você é doido terminal pela Cidade do Cinema, a edição especial Hollywood da "Vanity Fair" realmente vale o que custa.
Você conhece Hollywood. Lá, quando as crianças brincam de casinha, uma delas fala: "Quero ter uma família bem grande -três mães e quatro pais".

Tradução de Clara Allain

Texto Anterior: Moda se apodera de grupos marginais
Próximo Texto: 'Brasil dos Viajantes' aprofunda exposição
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.