São Paulo, quinta-feira, 20 de abril de 1995
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Deixem a língua em paz

O Senador Federal, sem nenhum debate e por meio de votação simbólica, aprovou anteontem uma medida que, em tese, altera a vida de todos os cidadãos brasileiros alfabetizados. Mais uma vez, decidiu-se proceder a algumas irrelevantes modificações na língua portuguesa. E por força de lei.
A aprovação do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa consegue ser, a um só tempo, fútil em termos puramente técnicos e desastrosa do ponto de vista econômico.
Não são por certo uns poucos acentos (que quase ninguém usa certo mesmo), três ou quatro hífens e o fim do trema e das consoantes mudas empregadas em Portugal que criam obstáculos para circulação de livros nos países lusófonos.
Se existem entraves para a comunicação escrita entre Portugal e suas ex-colônias, eles estão nas gírias e expressões idiomáticas, coisa que reforma alguma pode unificar -nem seria desejável.
Os brasileiros sempre rirão maliciosamente cada vez que ouvirem de um português que ele entrou na bicha para apanhar um cacete quentinho (entrar na fila para pegar uma bengala de pão quentinha). Da mesma forma, os portugueses sempre estranharão quando o presidente empregar o tupismo "nhenhenhém". Isso é bom e faz parte da evolução das línguas.
Já o impacto econômico da reforma não pode ser menosprezado. Se a medida entrar em vigor, estarão inutilizados, da noite para o dia, centenas de milhares de fotolitos prontos para reedições. Dicionários e livros didáticos tornar-se-iam papel para reciclar. E isso para alterações que abarcam de 0,5% a 5% do léxico, dependendo do país.
Se fosse uma reforma para resolver todos os problemas fonéticos e ortográficos da língua portuguesa, tornando-a mais simples e fácil de aprender, aí, talvez, valesse a pena o esforço. Não é o caso.
A língua é um patrimônio de todos os que falam ou escrevem, que se desenvolve segundo a sua própria lógica e seu próprio tempo. Já é hora de romper a velha tradição de tentar resolver tudo a golpes de decreto. Se o Estado não faz nada mesmo, que pelo menos deixe o vernáculo em paz.

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